Mestre Eckhart – Tratado do Desprendimento 10


  1. Ora eu pergunto ainda: qual é a oração do coração desprendido?
  2. Eu respondo dizendo que a pureza do desprendimento não pode rezar, porque aquele que reza deseja obter qualquer coisa ou que Deus lhe retire qualquer coisa.
  3. Ora o coração desprendido não deseja nada e também não tem nada de que queira ser liberto.
  4. É por isso que ele está desprendido de qualquer oração, e a sua oração não é nada mais que estar conforme a Deus. Eis toda a sua oração.
  5. Neste sentido nós podemos citar o que diz S. Dioniso sobre as palavras de S. Paulo: "Todos correm para obter a coroa, e no entanto ela só é atribuída a um único"; todas as potências da alma correm para obter a coroa, e no entanto ela só é atribuída ao que é essência.
  6. Dioniso diz portanto: "Esta corrida não consiste em nada mais que em se afastar de todas as criaturas para se unir ao Incriado."
  7. E quando a alma chega a isso, perde o seu nome e Deus atrai-a a ele, de tal forma que ela não é mais nada em si, da mesma forma que o sol atrai a si a aurora, de tal forma que ela não é mais nada.
  8. Nada mais leva o ser humano até lá que o puro desprendimento.
  9. Nós podemos ainda citar aqui as palavras de S. Agostinho: a alma tem uma entrada secreta na natureza divina onde todas as coisas não são mais nada para ela.
  10. Na terra, esta entrada não é nada mais que o puro desprendimento.
  11. E quando o desprendimento chega ao seu cume, o seu conhecimento torna-o desconhecedor, o amor torna-o não amante, e a luz torna-o tenebroso.
  12. Nós podemos ainda citar aqui o que diz um mestre: os pobres em espírito são aqueles que abandonaram todas as coisas a Deus, tal como ele as tinha quando nós não existíamos.
  13. Só pode agir assim um coração puro e desprendido.
  14. Que Deus se compraz mais num coração desprendido que em todos os outros corações, nós constatamos nisto, porque se tu me perguntas: O que procura Deus em todas as coisas, eu respondo-te pelo Livro da Sabedoria. Ele diz lá: "Eu procuro o repouso em todas as coisas."
  15. Ora não existe repouso completo em nenhum sítio, senão no coração desprendido.
  16. É por isso que Deus gosta mais de estar lá do que noutras virtudes ou noutras coisas.
  17. Tu deves saber também que quanto mais o ser humano se esforça por se tornar acessível ao influxo divino, mais ele é bem-aventurado, e aquele que se pode colocar na suprema disponibilidade fica também na suprema beatitude.
  18. Ora nada se pode tornar acessível ao influxo divino senão na conformidade com Deus, porque quanto mais um ser humano é um com Deus, mais ele é acessível ao influxo divino.
  19. Ora a conformidade com Deus provém de que o ser humano se submeta a Deus, e quanto mais o ser humano se submete à criatura, menos está conforme a Deus.
  20. Ora o coração puro e desprendido está liberto de todas as criaturas.
  21. É por isso que ele está totalmente submetido a Deus; assim, ele está na perfeita conformidade com Deus e totalmente acessível ao influxo divino.
  22. É o que pensava S. Paulo quando dizia: "Revistam-se de Jesus Cristo."
  23. Ele quer dizer: pela conformidade com Cristo, e revestir-se dele não se pode fazer senão pela conformidade com Cristo.
  24. E sabe: quando Cristo se fez homem, ele não revestiu apenas um homem, ele revestiu a natureza humana.
  25. É por isso que: desprende-te de todas as coisas, ficará somente aquilo que Cristo revestiu, e assim tu te terás revestido de Cristo.


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