Mestre Eckhart – Tratado do Desprendimento 8


  1. Ora qualquer um poderia perguntar: Cristo estava também num desprendimento imutável quando disse: "A minha alma está triste até à morte"?
  2. E Maria, quando estava ao pé da cruz - e portanto fala-se muito da sua lamentação - como é que tudo isto se pode concordar com o desprendimento imutável?
  3. Aqui, tu deves saber o que dizem os mestres; dentro de cada ser humano estão duas pessoas diferentes; uma chama-se pessoa exterior, é o ser sensitivo; é servido pelos cinco sentidos, e no entanto a pessoa exterior atua pela potência da alma.
  4. A outra pessoa chama-se interior, é a interioridade do ser humano.
  5. Ora tu deves saber que um ser humano espiritual que ama Deus não faz apelo às potências da alma na pessoa exterior, a não ser quando os cinco sentidos têm absolutamente necessidade, e a interioridade não se volta para os cinco sentidos exceto na medida em que é o chefe e o guia dos cinco sentidos, e vigia sobre eles para que eles não se entreguem ao seu objeto segundo a animalidade, como fazem certas gentes que vivem segundo a sua voluptuosidade carnal tal como fazem os animais sem razão, e tais gentes chamam-se mais verdadeiramente animais que seres humanos.
  6. E todas as potências que a alma possui, para além daquilo que a alma dá aos cinco sentidos, as suas potências, a alma dá-os inteiramente à pessoa interior, e quando esse ser humano se volta para qualquer coisa elevada e nobre, a alma retira para si todas as potências que emprestou aos cinco sentidos, e o ser humano é privado dos seus sentidos e arrebatado, porque o seu objeto é uma imagem intelectual ou qualquer coisa intelectual sem imagem.
  7. Mas aprende que Deus espera de todo o ser humano espiritual que ele ame com todas as potências da alma. Ele disse com efeito: "Ama o teu Deus com todo o teu coração."
  8. Ora certas pessoas consomem absolutamente todas as potências da alma na pessoa exterior.
  9. São aquelas que voltam todos os seus sentidos, e a sua razão, para os bens passageiros e que não sabem nada da pessoa interior.
  10. Ora tu deves saber que a pessoa exterior pode ter uma atividade, enquanto que a pessoa interior pode permanecer totalmente livre e insensível.
  11. Ora no Cristo também existia uma pessoa exterior e uma pessoa interior, da mesma forma na Nossa Senhora.
  12. E quando Cristo e a Nossa Senhora falavam de coisas exteriores, eles faziam-no segundo a pessoa exterior, enquanto que a pessoa interior permanecia num desprendimento imutável.
  13. Assim, quando Cristo disse: "A minha alma está triste até à morte", e quando a Nossa Senhora se lamentava e o que quer que ela pudesse dizer ou fazer, a sua interioridade permanecia num desprendimento imutável.
  14. Eis uma comparação: uma porta abre-se e fecha-se sobre um gonzo.
  15. Ora eu comparo a prancha exterior da porta à pessoa exterior, e comparo o gonzo à pessoa interior.
  16. Ora conforme a porta se abre ou fecha, a prancha exterior volta-se para aqui e para acolá; no entanto o gonzo permanece imóvel no seu lugar e não muda nunca apesar disso.
  17. Passa-se o mesmo aqui, se tu compreenderes bem.


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