Mestre Eckhart – Tratado da Nobreza


  1. Nosso Senhor disse no Evangelho: "Uma pessoa nobre partiu para um pais distante afim de aí obter um reino, e regressou em seguida." 1 Nosso Senhor ensina-nos, com estas palavras, a que ponto o ser humano é criado nobre na sua natureza, a que ponto é divino aquilo que ele pode atingir pela graça, e também como é que ele lá deve chegar. Estas palavras estão também em relação com uma grande parte da Santa Escritura.
  2. É preciso primeiro saber, e é absolutamente manifesto, que o ser humano tem em si duas naturezas: o corpo e o espírito. É por isso que um texto diz: Aquele que se conhece a si próprio conhece todas as criaturas, porque todas as criaturas são ou corpo ou espírito. É por isso que a Escritura diz do ser humano que há em nós uma pessoa exterior e uma outra: a pessoa interior 2. À pessoa exterior pertence tudo aquilo que é inerente à alma, envolto em carne e misturado com ela, fazendo obra corporal comum com e dentro de cada membro, como o olho, a orelha, a língua, a mão e outros. E a Escritura chama a isso tudo a pessoa velha, a pessoa terrestre, a pessoa exterior, a pessoa inimiga, uma pessoa escrava.
  3. A outra pessoa que existe em nós é a pessoa interior; a Escritura chama-lhe uma pessoa nova, uma pessoa celeste, uma pessoa jovem, um amigo e uma pessoa nobre. E é nela que pensa Nosso Senhor quando diz que "uma pessoa nobre partiu para um pais distante afim de aí obter um reino, e regressou em seguida".
  4. É preciso ainda saber que São Jerónimo e os mestres em geral, dizem que, desde o início da sua existência humana, cada ser humano tem um espírito bom, um anjo, e um espírito mau, um demónio. O anjo bom convida e incentiva constantemente para o que é bom, para o que é divino, para a virtude, e para o que é celeste e eterno. O espírito mau convida e incentiva sem cessar a pessoa para o que é temporal e efémero, para o que é contrário à virtude, mau e diabólico. Esse mesmo espírito mau relaciona-se constantemente com a pessoa exterior e, por ela, lança sem cessar e em segredo armadilhas à pessoa interior, tal como a serpente se relacionou com a Senhora Eva e por intermédio dela com o homem Adão. A pessoa interior é Adão. O elemento masculino na alma é a árvore boa que sempre e sem cessar dá bons frutos, da qual fala também Nosso Senhor. É também o campo no qual Deus semeou a sua imagem e a sua semelhança e onde ele lança a boa semente, a raiz de toda a sabedoria, de todas as artes, de todas as virtudes, de toda a bondade: a semente da natureza divina. A semente da natureza divina, é o Filho de Deus, o Verbo de Deus.
  5. A pessoa exterior é a pessoa inimiga, a má, que semeou e lançou o joio. São Paulo disse dele próprio: "Eu encontro em mim aquilo que me entrava, contrário àquilo que Deus ordena, ao que Deus aconselha, ao que Deus disse e diz ainda no mais elevado, no fundo da minha alma." Noutro local, ele diz ainda gemendo: "Ai! Infeliz que eu sou! Quem me libertará desta carne e deste corpo mortal?" Noutro local ainda, ele diz que o espírito do ser humano e a carne estão constantemente opostas uma ao outro. A carne aconselha o vício e a malícia; o espírito aconselha o amor de Deus, a alegria, a paz, e todas as virtudes. Àquele que segue o espírito, que vive segundo o espírito e o seu conselho pertence à vida eterna. A pessoa interior é aquela de quem Nosso Senhor diz que "uma pessoa nobre partiu para um pais distante afim de aí obter um reino." É a árvore boa da qual Nosso Senhor diz que ela dá sempre bons frutos e nunca maus, porque ela quer a Bondade, inclina para a Bondade, para a Bondade tal como ela plana nela própria, sem ser tocada por isto ou aquilo. A pessoa exterior é a árvore má que nunca pode dar bons frutos.
  6. Da nobreza da pessoa interior e da indignidade da pessoa exterior, da carne, os mestres pagãos Cícero e Séneca dizem também que nenhuma alma racional existe sem Deus; a semente de Deus está em nós. Se ela tivesse um cultivador bom e sábio, laborioso, ela tanto melhor prosperaria e elevar-se-ia para Deus do qual ela é a semente, e o fruto seria semelhante à natureza de Deus. A semente da pereira cresce para se tornar numa pereira, a semente da nogueira para se torna nogueira, a semente de Deus para se tornar Deus. Mas se a boa semente tem um cultivador insensato e mau, o joio cresce, cobre e sufoca a boa semente, de forma que ela não pode chegar à luz nem se desenvolver. Orígenes, um grande mestre, disse: Visto que Deus ele próprio semeou, enterrou, gerou esta semente, ela pode bem ser coberta e escondida, ela não é nunca aniquilada nem extinta; ela é ardente, ela brilha, ela ilumina e queima e tende sem cessar para Deus.
  7. O primeiro grau da pessoa interior, da pessoa nova, disse Santo Agostinho, é quando a pessoa vive segundo o modelo de pessoas boas e santas, mas ela apoia-se ainda nas cadeiras, fica perto das paredes e alimenta-se de leite.
  8. O segundo grau, é quando daqui em diante ela não olha mais apenas para os modelos exteriores nem para as pessoas de bem, mas corre à pressa para o ensinamento e o conselho de Deus e da sabedoria divina, volta as costas à humanidade e o seu rosto para Deus, escapa aos joelhos da sua mãe e sorri para o Pai celeste.
  9. O terceiro grau, é quando a pessoa escapa cada vez mais à sua mãe, se afasta sempre daqui em diante dos joelhos dela, foge da preocupação, rejeita o medo, apesar de que, mesmo podendo agir mal e injustamente sem escandalizar ninguém, ela não tem no entanto desejo disso; porque ela está unida a Deus pelo amor e pelo bom zelo, até que Deus a leve e a introduza na alegria, na suavidade e na felicidade onde ela não pode suportar o que é dissemelhante e estrangeiro a Deus.
  10. O quarto grau, é quando ela cresce e se enraíza cada vez mais no amor e em Deus, de tal forma que ela está pronta a aceitar tudo o que é contrariedade, tentação, adversidade, e a suportar sofrer de bom grado e de boa vontade, com desejo e alegria.
  11. O quinto grau, é quando ela vive fechada por todas as partes em si própria, repousando pacificamente na riqueza e na superabundância da suprema e inexprimível Sabedoria.
  12. O sexto grau, é quando a pessoa está desprendida das imagens e transformada acima dela própria pela eternidade de Deus, quando ela chegou ao esquecimento total e perfeito da vida efémera e temporal, transformada numa imagem divina, tornada filha de Deus. Para além deste, não existe grau mais elevado, lá estão o repouso e a felicidade eternas, porque o fim da pessoa interior e da pessoa nova é a vida eterna 3.
  13. Para esta pessoa interior, esta pessoa nobre, na qual a semente de Deus está impressa e semeada – como é que esta semente, esta imagem da natureza e da essência divinas, o Filho de Deus, aparece, como é que nós a apercebemos, e como é que também de tempos a tempos ela fica escondida – o grande mestre Orígenes apresenta uma comparação: a imagem de Deus, o Filho de Deus está no fundo da alma como uma fonte viva. Mas se deitarem terra por cima dela, quer dizer o desejo terrestre, ela é entravada e coberta, por forma que ela não é mais reconhecida e não é mais vista; no entanto ela permanece viva em si própria, e quando se retira a terra, ela reaparece e bebe-se dela. O mesmo mestre diz que é feita alusão a esta verdade no primeiro livro de Moisés, onde está escrito que Abraão tinha escavado no seu campo poços de água viva, que os malfeitores encheram de terra, mas que em seguida, quando a terra foi retirada, os poços reapareceram vivos.
  14. Pode-se fazer também outra comparação. O sol brilha sem interrupção, no entanto, quando uma nuvem ou um nevoeiro se interpõe entre nós e o sol, nós não vemos a sua luz. Da mesma forma, quando a vista é fraca, doente ou velada, não se apercebe da luz. Além disso, por vezes eu apresentei uma comparação impressionante. Quando um mestre faz uma imagem de madeira ou pedra, ele não introduz a imagem na madeira, ele retira as aparas que escondiam e recobriam a imagem; ele não acrescenta nada à madeira, pelo contrário, ele retira e escava aquilo que a recobre, ele retira as escórias; brilha então aquilo que estava escondido por baixo. Tal é o tesouro escondido no campo, como diz Nosso Senhor no Evangelho.
  15. Santo Agostinho disse: "Se a alma se eleva completamente apenas para Deus, a imagem de Deus aparece e brilha, mas se a alma se volta para o exterior, mesmo pelo exercício exterior da virtude, a imagem é completamente recoberta." É o que ensina São Paulo quando diz que as mulheres trazem a cabeça coberta e os homens a cabeça nua. É porque tudo o que, na alma, se volta para baixo, recebe daí um véu que a recobre, mas o que, na alma, se eleva para Deus, é a pura imagem de Deus, o nascimento de Deus sem véu, despojado na alma despojada 4. Da pessoa nobre, imagem de Deus, filho de Deus, semente da natureza divina que nunca é aniquilada em nós, apesar de poder ser recoberta, o rei David disse no saltério: "Apesar de muitas vaidades, sofrimentos e misérias assaltarem o ser humano, no entanto ele permanece na imagem de Deus, e a imagem de Deus nele." A verdadeira luz brilha nas trevas apesar de não a podermos ver.
  16. "Não reparem na minha tez escura, diz o Livro do Amor 5, eu sou bela e bem feita, mas o sol queimou-me." O sol é a luz deste mundo, e isso significa que o que é mais elevado e o melhor entre as coisas feitas e criadas, esconde e deteriora a imagem de Deus em nós. "Retirem as escórias da prata, disse Salomão, então o vaso mais puro deve luzir e brilhar": a imagem, o Filho de Deus na alma. E é o que quer dizer Nosso Senhor quando fala duma "pessoa nobre que partiu", porque a pessoa deve abandonar todas as imagens e a si própria, afastar-se e tornar-se estrangeira e dissemelhante a tudo, se ela quer e deve verdadeiramente acolher o Filho e tornar-se filho, no seio e no coração do Pai.
  17. Toda a espécie de mediação é estrangeira a Deus. "Eu sou, disse Deus, o primeiro e o último." Não existe distinção nem na natureza de Deus nem nas Pessoas segundo a unidade da natureza delas. A natureza divina é Um, e cada Pessoa também é Um e o mesmo Um que é a natureza delas. A distinção entre o ser e a essência é compreendida como Um e é Um. É apenas lá onde esse Um não está mais em si próprio que ele recebe, possui e produz uma distinção. É por isso que no Um se encontra Deus e aquele que quer encontrar Deus deve tornar-se um. "Uma pessoa partiu", disse Nosso Senhor. Na distinção não se encontra nem o Um nem o ser, nem Deus, nem repouso, nem beatitude, nem satisfação. Sê um, afim de que tu possas encontrar Deus. E em verdade, se tu fosses verdadeiramente um, tu permanecerias um também na diversidade e a diversidade tornar-se-ia um para ti e não te poderia entravar absolutamente em nada. O um permanece igualmente um em mil vezes mil pedras tal como em quatro pedras, e mil vezes mil é tão certamente um número simples como quatro é um número (simples).
  18. Um mestre pagão disse que o um nasceu de Deus altíssimo. A sua natureza é de ser um com o Um. Quem o procura abaixo de Deus engana-se a si próprio. E em quarto lugar, diz o mesmo mestre, esse Um não tem amizade mais real que a que tem com as jovens ou virgens, como o diz São Paulo: " Virgens puras, eu vos confiei e desposei ao Um." E é assim absolutamente que a pessoa deveria ser, porque Nosso Senhor disse: "Uma pessoa partiu."
  19. "Ser humano", segundo o significado do nome em latim, designa num sentido aquele que se inclina diante de Deus e se submete a ele com tudo aquilo que ele é e tudo aquilo que ele tem, que olha para cima para Deus, não para aquilo que lhe pertence, que ele sabe estar atrás de si, por baixo de si, ao lado de si. Tal é a plena e verdadeira humildade 6: o ser humano tem este nome a partir da terra. Eu não falarei mais disto. Quando se diz "ser humano", essa palavra significa também qualquer coisa de elevada acima da natureza, acima do tempo, e acima de tudo o que está voltado para o tempo ou o gosto do mundo, e eu digo a mesma coisa também do espaço e da corporalidade. Além disso, este "ser humano" não tem de uma certa maneira nada de comum com o que quer que seja, quer dizer que ele não tem nem forma nem semelhança com isto ou aquilo, e não sabe nada do vazio, de forma que não se encontra e não se percepciona em nenhuma parte dele algo de vazio, e que o vazio lhe é tão totalmente ausente por forma que se encontra unicamente nele vida pura, ser, verdade e bondade. Quem é feito assim é uma "pessoa nobre", em verdade, nem mais nem menos.
  20. Há ainda um outro modo de explicação e um ensinamento para o que Nosso Senhor chama "uma pessoa nobre". Deve-se saber com efeito que aqueles que conhecem Deus sem véu conhecem as criaturas ao mesmo tempo que ele, porque o conhecimento é uma luz da alma e, por natureza, todas as pessoas aspiram ao conhecimento, porque mesmo o conhecimento das coisas más é bom. Ora os mestres dizem: Quando se conhece a criatura em si própria, é um conhecimento "vespertino", porque assim vê-se as criaturas por imagens com uma multidão de distinções, mas quando se conhece as criaturas em Deus, esse conhecimento chama-se e é um conhecimento "matutino" e assim contempla-se as criaturas sem nenhuma distinção, desapropriadas de toda imagem e despojadas de toda semelhança no Um que Deus é ele próprio 7. Isto é também a "pessoa nobre" de quem Nosso Senhor disse: "Uma pessoa nobre" partiu: nobre porque ela é um, e reconhece Deus e a criatura no Um.
  21. Eu quero agora passar a outro significado daquilo que é a "pessoa nobre". Eu digo: quando a pessoa, a alma, o espírito contempla Deus, ele sabe-se e reconhece-se também como conhecedor, quer dizer: ele reconhece que contempla e reconhece Deus. Ora, pareceu a certos e parece também muito verosímil, que a flor e o núcleo da beatitude se situam no conhecimento pelo qual o espírito conhece que ele conhece Deus, porque se eu possuísse todas as delícias sem saber nada acerca delas, que me importaria, e que delícias seriam elas para mim? Portanto eu digo com segurança que não é assim. Se é verdade que, sem isso, a alma não seria bem-aventurada, a beatitude não se situa no entanto aí, porque o primeiro elemento da beatitude é que a alma contemple Deus sem véu. É daí que ela recebe todo o seu ser e a sua vida e que ela obtém tudo o que ela é no abismo de Deus e não sabe nada do conhecimento nem do amor nem do que quer que seja. Ela repousa totalmente e exclusivamente no ser de Deus, ela não conhece lá senão o Ser e Deus. Mas quando ela sabe e reconhece que contempla, conhece e ama Deus, é uma saída desse estado e um regresso ao estado primeiro segundo a ordem natural. Porque ninguém se reconhece como branco senão aquele que é realmente branco. É por isso que aquele que se reconhece como sendo branco se funde e se apoia na brancura, e ele tira o seu conhecimento não diretamente nem sem conhecimento da cor, mas ele tira o seu conhecimento da cor, e do saber que ele tem dela, do que é o branco, e ele obtém o seu conhecimento não exclusivamente da cor em si; mas antes, ele obtém o seu conhecimento e o seu saber daquilo que é colorido ou daquilo que é branco e ele reconhece-se como sendo branco. Branco é qualquer coisa de bem menor e de bem mais exterior que a brancura. Muito diferentes são as paredes e o fundamento sobre a qual as paredes estão construídas.
  22. Os mestres dizem que o poder graças ao qual o olho vê é diferente do poder pelo qual ele reconhece aquilo que ele vê. O facto de ver, ele tira-o exclusivamente da cor, não daquilo que é colorido. Donde importa pouco que o que é colorido seja pedra ou madeira, uma pessoa ou um anjo, o essencial reside unicamente no facto que ele tem uma cor.
  23. Da mesma forma, eu digo que a pessoa nobre pega e toma todo o seu ser, a sua vida e a sua beatitude unicamente de Deus, junto de Deus e em Deus, não do conhecimento, da contemplação e do amor de Deus ou outras coisas semelhantes. É por isso que Nosso Senhor diz muito certamente que a vida eterna consiste em conhecer apenas Deus como sendo o único verdadeiro Deus, não em conhecer que se conhece Deus. Como é que o ser humano se conhece como conhecendo Deus, quando ele não se conhece a si próprio? Porque certamente o ser humano não se conhece a si próprio nem às outras coisas, mas unicamente apenas Deus, em verdade, quando ele se torna e é bem-aventurado na raiz e no fundo da beatitude. Mas quando a alma reconhece que ela conhece Deus, ela adquire ao mesmo tempo o conhecimento de Deus e dela própria.
  24. Ora, existe uma outra potência, como eu expliquei, graças à qual o ser humano vê, e uma outra, graças à qual ele sabe e reconhece que vê. É verdade que agora, aqui em baixo, em nós, esta potência pela qual nós sabemos e reconhecemos que vemos é mais nobre e mais elevada que a potência graças à qual nós vemos, porque a natureza começa a sua operação pelo mais baixo, enquanto que Deus, nas suas obras, começa pelo mais perfeito. A natureza faz o ser humano a partir da criança e a galinha a partir do ovo, mas Deus faz o ser humano antes da criança e a galinha antes do ovo. A natureza torna primeiro a madeira quente e abrasadora, e somente então ela produz o ser do fogo, mas Deus dá primeiro o ser a todas as criaturas e em seguida no tempo, e portanto fora do tempo, separadamente, tudo o que pertence ao ser. Da mesma forma, Deus dá o Espírito Santo antes dos dons do Espírito Santo.
  25. Eu digo portanto que não há beatitude sem que o ser humano tenha consciência e saiba bem que ele contempla e conhece Deus, mas Deus quer que não seja essa a minha beatitude. Se isso é suficiente para outro, que ele fique por aí, mas eu tenho pena dele. O calor do fogo e a natureza do fogo são completamente diferentes e estranhamente distantes um do outro na natureza, apesar deles serem muito próximos um do outro no espaço e no tempo. A vista que é a de Deus e a nossa vista são absolutamente distantes e diferentes uma da outra 8.
  26. É por isso que Nosso Senhor tem razão em dizer que uma pessoa partiu para uma país distante afim de aí obter um reino e regressou em seguida. Esse ser humano deve ser um em si próprio e procurar esse um em si e no Um, e o receber no Um, quer dizer unicamente contemplar Deus e "regressar", quer dizer saber e reconhecer que se tem um saber e um conhecimento de Deus.
  27. O profeta Ezequiel exprimiu previamente aquilo que está exposto aqui quando ele disse que uma águia poderosa, com grandes asas, com grande envergadura, coberta de todos os tipos de penas, veio à nobre montanha, agarrou a medula da árvore mais elevada, arrancou a coroa da sua folhagem e levou-a para baixo. Aquilo que o Nosso Senhor chama uma pessoa nobre, o profeta chama uma grande águia. Quem é portanto mais nobre que aquele que nasceu, duma parte do mais elevado e do melhor da criatura, e doutra parte do fundo mais íntimo da natureza divina e da solidão? "Eu quero conduzir a alma nobre na solidão e eu falarei ao teu coração", disse o Senhor no profeta Oséias. Um com o Um, um do Um, um no Um e, no Um, um eternamente. Amém. 9

Notas
  1. O ponto de partida do tratado é o versículo de Lucas 19, 12: «Um homem nobre partiu para uma país distante afim de aí obter um reino, e regressou em seguida.». [  ]
  2. Tal como fez várias vezes nas suas obras latinas e alemãs, Eckhart retoma a definição clássica da "pessoa exterior" e da "pessoa interior". Ele compara esta, a pessoa nobre, à semente que frutificará se o mau cultivador não a sufocar. É a semente divina, a imagem de si próprio que Deus inseriu dentro da nossa alma, que pode estar bem escondida, mas nunca aniquilada. [  ]
  3. Seguindo Santo Agostinho em De vera religione, mas com mais amplitude, no desenvolvimento das imagens, Eckhart indica os seis graus de ascensão da pessoa nobre, as seis etapas que deve percorrer na sua viagem. A pessoa nobre imita primeiro as pessoas devotas, como uma criança que ainda não se aguenta bem em pé, e se alimenta de leite. No segundo grau, ela volta as costas à humanidade e procura a face divina. No terceiro, ela rejeita o medo, e aplica-se às coisas de Deus, unida a ele no amor. Em seguida enraíza-se de tal forma nele que ela está pronta para aceitar os sofrimentos de qualquer natureza. No quinto, ela repousa em silêncio na superabundância da suprema sabedoria. Chegada ao sexto grau, transformada para além de si própria na eternidade de Deus, ela esquece totalmente a vida temporal, ela tornou-se filha de Deus.
       Agostinho tinha indicado um sétimo grau que é o repouso supremo, e que não se distingue da beatitude eterna. Eckhart não fala de um tal sétimo grau, só fala de repouso e de beatitude eternas, com termos equivalentes aos de Agostinho, "porque o fim da pessoa interior e da pessoa nova é a vida eterna".
       Podia-se pensar que ele só faz aqui uma alusão à vida do além. No entanto, encavalitando as comparações, ele regressa em seguida à semente e à imagem de Deus na alma, ele multiplica os símbolos retirados a Orígenes, à Santa Escritura, à experiência das coisas humanas que representam essa imagem por vezes visível por vezes escondida. [  ]
  4. Eckhart só fala aqui uma vez em termos próprios do nascimento de Deus na alma, mas é sobre a mesma realidade espiritual que ele se exprime com outras palavras: "porque a pessoa deve abandonar todas as imagens e a si própria, afastar-se e tornar-se dissemelhante a tudo, se ela quer e deve verdadeiramente acolher o Filho e torna-se filho no seio e no coração do Pai." "Sê um, afim de que tu possas encontrar Deus." [  ]
  5. Cântico dos cânticos. ]
  6. Humilitas, tem a mesma raiz que húmus, terra. [  ]
  7. Suso retomou este texto no seu Livro da Verdade. [  ]
  8. É preciso especialmente ter atenção a uma questão que poderia parecer à primeira abordagem como uma discussão de escola e que Mestre Eckhart tratou duas vezes ele próprio no seu comentário latino sobre São João: A beatitude da alma consiste na contemplação de Deus ou no conhecimento que ela tem disso? "Ora, pareceu a certos, e parece também muito verosímil, que a flor e o núcleo da beatitude se situam no conhecimento pelo qual o espírito conhece que conhece Deus... A beatitude não se situa no entanto aí, porque o primeiro elemento da beatitude, é que a alma contemple Deus sem véu. É daí que ela recebe todo o seu ser e a sua vida e que ela recebe tudo o que ela é no abismo de Deus e não sabe nada do amor nem do conhecimento nem do que quer que seja... Mas quando ela sabe e reconhece que ela contempla, conhece e ama Deus, é uma saída desse estado (uzslac) e um regresso ao estado primeiro (widerslac) segundo a ordem natural."
       Nós aprendemos aqui, sem equivoco possível, que essa ultrapassagem do sexto grau, do qual Eckhart nos falou no início do seu tratado, onde a pessoa atingiu o esquecimento perfeito da vida efémera, não é apenas a vida do além, mas já (o jam de Santo Agostinho) se situa nesta vida terrestre. De outra forma, como se poderia tratar de "saída" e de "regresso"?
       Ora é notável que Suso, tão próximo do seu mestre, se não pelo caracter pelo menos pela doutrina, retomou quase textualmente a passagem Do homem nobre sobre as graças de união a Deus no seu Livro da Verdade, precisamente para defender Eckhart, e não notar nitidamente a diferença entre a doutrina de Eckhart e a do "Selvagem", representando os Begardos. À questão de saber se o ser humano pode conhecer essa realidade neste mundo, Suso responde: "Isso pode bem acontecer quando o corpo ainda está sobre a terra segundo a forma de falar comum, mas então o ser humano está para além do tempo."
       Mais expansivo que o seu mestre, Suso faz, mais que ele, alusões transparentes às graças místicas. Pode-se assim considerar a resposta precedente como uma espécie de complemento àquilo que Eckhart nos disse. [  ]
  9. A data da redação do tratado Do ser humano nobre não deve ter sido muito afastada da redação do Livro da Consolação divina, cerca de 1310.
    Esta tradução foi realizada a partir da tradução francesa de Jeanne Ancelet-Hustache, «Maitre Eckhart - Les Traités», Éditions du Seuil, Paris, 1971, p. 141-153.
       Outra tradução deste sermão pode ser encontrada em «Mestre Eckhart - Tratados e Sermões» traduzido do original alemão por Jorge Telles de Menezes, Paulinas Editora, Lisboa, 2009, p. 163-178. [  ]



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