Nuvem de Desconhecimento – Capítulo 21



A exata interpretação desta frase do Evangelho: «Maria escolheu a parte melhor».
  1. Como compreender isto: Maria escolheu a parte melhor? Onde quer que seja estabelecido ou afirmado que uma coisa é a melhor, essa (coisa) reclama duas outras (coisas) antes dela: uma (coisa) boa, a segunda (coisa) melhor; por forma a que haja uma outra (coisa), a melhor (coisa), e terceira (coisa) em número. Mas quais são essas três coisas, das quais Maria escolheu a melhor? Três vidas não são, visto que a santa Igreja só considera duas: a vida ativa e a contemplativa; e são essas duas vidas que são secretamente expressas no relato do Evangelho, e figuradas pelas duas irmãs Marta e Maria: a ativa, por Marta; e a contemplativa, por Maria. Sem a primeira ou a segunda dessas vidas, não existe ninguém que possa ser salva; mas onde só há duas, ninguém pode escolher essa terceira via: a melhor.
  2. Mas ainda, apesar de só haverem duas vidas, entre essas duas vidas, no entanto, há três partes: das quais três, se vai de uma parte boa até uma melhor, e dessa até à parte melhor. Cada uma dessas três, no seu lugar particular, foi colocada já neste escrito. Porque, assim como foi dito previamente, a primeira parte, são as honestas e boas obras corporais de caridade e de misericórdia; e é esse o primeiro grau da vida ativa, como foi dito. A segunda parte dessas duas vidas, são as eficazes meditações espirituais do ser humano sobre a sua própria miséria, a Paixão de Cristo, e sobre as alegrias do céu. A primeira parte é boa, e esta segunda (parte é) melhor: porque é este o segundo grau da vida ativa, e primeiro da contemplativa; nesta parte, uma e a outra vida, a contemplativa e a ativa, estão em conjunto acopladas em parentesco espiritual, e feitas irmãs a exemplo de Marta e Maria. Até esta altura, e não mais alto, salvo exceção muito rara e por graça particular, um ativo pode chegar à contemplação; até esse nível baixo, mas não mais baixo, salvo por uma excepção muito rara e uma grande necessidade, um contemplativo pode descer à vida ativa.
  3. A terceira parte destas duas vidas repousa no alto, nessa obscura "nuvem de desconhecimento", com todos os impulsos e o secreto pressionar do amor em direção a Deus nEle próprio. A primeira parte é boa, a segunda é melhor, mas a terceira é de todas a melhor. É ela a «parte melhor» de Maria. E assim podemos plenamente compreender que nosso Senhor não diga que Maria escolheu a vida melhor, visto que não há em número mais que duas vidas, e que de duas, só se pode escolher uma melhor e não a melhor de todas. Mas Ele disse que, dessas vidas, Maria escolheu a parte melhor, a qual nunca lhe será tirada.
  4. A primeira parte e a segunda, apesar de completamente boas e santas como elas são, não deixam de terminar com esta vida. Porque não haverá nenhuma necessidade, na outra vida, das obras da misericórdia como no presente, nem do choro sobre a nossa miséria ou a Paixão de Cristo. Porque não haverá ninguém então para ter fome e sede como aqui, ninguém morrerá de frio, nem ficará doente, ou sem habitação, ou na prisão; ninguém também terá necessidade de ser enterrado visto que ninguém poderá morrer. Mas esta terceira parte que Maria escolheu, escolhe-a aquele que pela graça tem a vocação para a escolher, ou para dizê-lo mais verdadeiramente: aquele que Deus, para a fazer, escolheu. Que ele siga com ardor a sua inclinação, porque isso nunca lhe será tirado: porque se (isso) começa aqui, (isso) durará sem fim e para sempre.
  5. E é por isso que deixem a voz de nosso Senhor elevar-se contra esses ativos, como se agora Ele falasse por nós a eles, como então Ele fez a Marta por Maria: «Marta, Marta!» – «Ativos, ativos! – Afadiguem-se tanto quanto vocês possam na primeira e na segunda parte, tanto numa, quanto na outra, ou então numa e na outra conjuntamente com todo o corpo, se vocês tiverem o justo desejo e vocês se sentirem dispostos a isso. E não se misturem de forma nenhuma com os contemplativos. Vocês não sabem nada daquilo que eles têm: também deixem-nos portanto sentados no repouso deles e na ocupação deles com esta terceira parte, a qual é a parte melhor de Maria.»


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