Nuvem de Desconhecimento – Capítulo 8



Um bom esclarecimento de certas dúvidas que podem surgir nesta obra, tirado de uma questão, pela refutação da própria curiosidade e astúcia do espírito humano natural, e pela distinção dos graus e partes entre a vida ativa e a contemplativa.
  1. Ora eis que tu me interrogas: «E o que é então, o que me ocupa assim durante essa obra, e saber se é coisa de bem ou má? Porque se fosse coisa má, dizes tu, então eu me maravilharia que ela viesse nesse ponto acrescer a devoção do ser humano. E frequentemente me pareceu que havia aí um reconforto precioso no escutar dos seus dizeres. E há aí muitas vezes, parece-me, em que ela me tira lágrimas do coração, quer apiedando-me com a Paixão de Cristo, quer sobre a minha própria miséria ou tantos outros objetos que todos me pareceram perfeitamente santos, e de um grande bem para mim. Também, ela não seria, pela minha estimativa, nada má. Mas se a coisa é boa, e que ainda por cima ela me faça um tal e tão grande bem pelos seus dizeres e suaves palavras, então grandemente eu me espanto e me questiono porque é que tu me dizes para eu a rejeitar, e para tão longe, para debaixo da "nuvem de esquecimento".»
  2. Eis seguramente o que me parece ser uma questão pertinentemente colocada, e à qual eu penso responder bem, tanto quanto eu puder na minha fraqueza.
  3. E primeiro, quando tu me perguntas o que é isso, que te ocupa e te pressiona tão fortemente durante esta obra, e que mesmo se oferece para te ajudar nela, eu digo que é um vivo e claro olhar na luz natural do teu espírito, o qual se imprime na tua alma.
  4. E quando tu me perguntas se a coisa é boa ou má, eu digo que nela própria, pertence-lhe ser sempre boa, segundo a sua natureza. Por isto: porque é um raio da semelhança de Deus. Mas quanto ao seu emprego, então ela pode ser boa, ou má. Boa, quando ela é, pela graça, aberta sobre uma visão da tua própria miséria, sobre a Paixão, sobre a bondade e sobre as obras admiráveis de Deus nas Suas criaturas, tanto corporais quanto espirituais. Em qual caso, não há aí nenhum motivo de espanto que ela acresça tão plenamente a tua devoção, tal como tu dizes. Mas lá onde a utilização é má, é quando ela é inchada pelo orgulho e a curiosidade de um grande saber e conhecimento livresco, tal como acontece nos doutos clérigos; mas ei-los apressados em se fazerem, não humildes alunos da divindade e mestres da devoção, mas estudantes orgulhosos do diabo e mestres das vaidades e da mentira. Para todos os outros homens ou mulheres, quais quer que eles sejam, religiosos ou seculares, também o uso ou emprego desse espírito natural é mau, quando os incham de orgulho e de curiosidade por todos os talentos mundanos, os carnais pensamentos de convulsão diante dos louvores do mundo, e a possessão das riquezas, dos vãos prazeres e das bajulações dos outros.
  5. E quando tu me perguntas porque é que tu a deves rejeitar debaixo da "nuvem de esquecimento", quando a coisa é assim, e tal que segundo a sua natureza ela é boa, e seguidamente, segundo tu indicas apropriadamente, ela te faz tanto bem e acresce de tal forma a tua devoção; eu respondo a isso e digo: Que tu deves perfeitamente compreender que há duas maneiras de viver na Santa Igreja.
  6. A primeira é a "vida ativa" e a segunda é a "vida contemplativa". A ativa é a vida inferior, e a contemplativa, superior. A "vida ativa" tem dois graus, um superior e um inferior, da mesma forma que a "vida contemplativa" também tem dois graus, um inferior e um superior. Mas também essas duas vidas estão nesse ponto acasaladas em conjunto que, apesar delas poderem ser diversas em alguns pontos, no entanto nem a primeira nem a segunda poderiam existir plenamente sem alguma parte da outra. Porquê assim? Porque aquela parte que é a superior da "vida ativa", é também a mesma parte que a inferior da "vida contemplativa". De tal forma que um ser humano não poderia ser plenamente ativo, se ele não fosse em parte contemplativo; nem também contemplativo absolutamente, por tanto que se pudesse ser aqui (neste mundo), que ele não seja em parte ativo. A condição da "vida ativa", é a de ter em conjunto quer o seu começo quer o seu fim nesta vida; mas não a "vida contemplativa", a qual começa efetivamente nesta vida, mas para durar sem conhecer fim. E a razão? É que a parte que Maria escolheu, nunca ela lhe será tirada. A "vida ativa" é perturbada, agitada e trabalhada por inúmeros objetos; mas a "vida contemplativa", ela, permanece sentada na paz com um objeto único.
  7. A "vida ativa" inferior, são as honestas boas obras materiais da caridade e de misericórdia. A sua parte superior, a qual é a inferior da "vida contemplativa", são as eficazes meditações espirituais e a atenta consideração pelo ser humano, com tristeza e contrição, da sua própria miséria; da Paixão de Cristo e dos seus servidores, com piedade e compaixão; dos admiráveis dons de Deus, da Sua bondade e das Suas obras em todas as Suas criaturas corporais e espirituais, com ações de graças e louvores. Mas a mais alta parte da contemplação, tanto quanto ela se pode fazer aqui (neste mundo), consiste inteiramente nessa obscuridade e nessa "nuvem de desconhecimento", e com um impulso de amor e uma cega consideração do Ser puro de Deus, unicamente Ele próprio.
  8. O ser humano, na sua "vida ativa" inferior, está fora de si e por baixo de si. Na "vida ativa" superior, e parte inferior da "vida contemplativa", o ser humano está dentro de si e igual a si próprio. Mas na "vida contemplativa" superior, é por cima de si que ele está, e debaixo do seu Deus. Por cima de si próprio: porque a vitória que ele promete a si, com o socorro da graça, está para lá do ponto que não se pode mais pretender atingir pela natureza; que é o de estar ligado e unido a Deus em espírito, em unidade de amor e em conformidade de vontade.
  9. E muito justamente tal como é impossível à razão humana o admitir, para um ser humano, que ele chegue à parte superior da "vida ativa", se ele não conseguiu, pelo menos, cessar e deixar por um tempo a parte inferior; exatamente igualmente também é que um ser humano não pode passar à parte superior da "vida contemplativa", se ele não conseguiu, pelo menos, cessar e deixar por um tempo, a sua parte inferior. E também é coisa ilegítima e que corre para o falhanço, o querer e pretender sentar-se nessas meditações, tentando conservar no entanto a sua atenção fixa no exterior nos trabalhos do corpo, feitos ou a fazer, tão santos quanto possam ser para além disso em si próprios; também seguramente é inadmissível e um falhanço certo, o pretender e querer trabalhar nessa obscuridade e nessa "nuvem de desconhecimento" com um afetuoso impulso de amor por Deus Ele próprio, deixando elevar-se acima de si e se colocar entre si e o seu Deus, qualquer pensamento ou qualquer meditação sobre os admiráveis dons de Deus, a Sua bondade e as Suas obras em cada uma das Suas criaturas corporais e espirituais, – tão santas quanto elas possam ser, para além disso, esses pensamentos eles próprios, tão reconfortantes e profundos!
  10. E esta é a razão porque eu te digo e peço que rejeites uma tal ideia aguda e sublime, e que a recubras com uma muito espessa "nuvem de esquecimento", tão santa quanto ela (a ideia) seja e te prometa mais que nunca de te assistir e ajudar no teu propósito. E o porquê, é que o amor pode, nesta vida, atingir Deus; mas a ciência não. E todo o tempo que a alma permanece neste corpo mortal, a ponta da nossa inteligência com respeito às coisas espirituais, e muito particularmente Deus, é sujada sempre mais por todos os tipos de imaginações, por culpa das quais o nosso trabalho não pode ser senão impuro. E a grande maravilha, seria que com isso nós não fossemos induzidos em inúmeros erros.


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