Nuvem de Desconhecimento – Capítulo 4



Da brevidade desta obra, e como não se pode chegar a ela pela curiosidade do espírito nem pela imaginação.
  1. Mas, afim de que tu não erres, nem penses que esta obra é diferente daquilo que ela é, é preciso que eu te fale dela um pouco mais longamente, segundo o meu entendimento.
  2. Esta obra não reclama um longo tempo, como crêem alguns, para a sua verdadeira realização; é com efeito a operação mais breve de todas aquelas que o ser humano possa imaginar. Ela nunca dura mais, nem menos, do que um átomo 1, o qual átomo, segundo a definição dos verdadeiros filósofos na ciência da astronomia, é a mais pequena parte do tempo: tão pequena que por causa mesmo da sua pequenez ele é indivisível e quase incompreensível. É sobre ele, sobre esse tempo, que está escrito: Todo o tempo que te é dado a ti, a ti será perguntado como tu o gastaste. E é motivo para que tu te preocupes com isso, porque ele não é nem mais longo nem mais curto, mas ele tem a medida certa, não mais, daquilo que é por dentro o principal poder ativo da tua alma: quer dizer a tua vontade. Porque pode haver e há, numa hora da tua vontade, exatamente tantos quereres e desejos, nem mais nem menos, que há de átomos numa hora.
  3. Ora se tu te encontrasses, pela graça, restabelecido no primeiro estado da alma humana, tal qual ela estava antes do pecado, então, e com a ajuda dessa mesma graça, tu serias mestre do seu, ou dos seus movimentos; e dessa forma ninguém se iria perder, mas todos convergiriam e tenderiam para o soberanamente desejável e supremo bem, o qual é Deus 2. Porque Ele vem mesmo à conveniência da nossa alma pela medida que Ele dá à sua Divindade; e a nossa alma igualmente está à Sua conveniência pela excelência original da nossa criação «à Sua imagem e à Sua semelhança». E por Ele próprio apenas, e nada para além d'Ele e n'Ele, Ele é plenamente suficiente, e ainda bem mais, para preencher a vontade e o desejo da nossa alma. E, pela virtude reformadora da graça, a nossa alma torna-se plenamente suficiente e capaz de O compreender inteiramente, a Ele que é incompreensível a todas as faculdades e poderes de conhecimento das criaturas, quer angélicas quer humanas: eu entendo bem pela ciência, mas não pelo amor delas. E é por isso que eu lhes chamo, neste caso, de faculdades do conhecimento. No entanto, todas as criaturas que têm inteligência, as angélicas assim como as humanas, possuem nelas próprias e cada uma por si, uma primeira potência operativa principal, a qual se chama de conhecimento, e uma outra potência operativa principal, a qual se chama do amor. Das quais duas faculdades, Deus é o criador delas, permanece sempre incompreensível à primeira, que é a do conhecimento; e à segunda, que é a do amor, Ele é completamente compreensível, plenamente e inteiramente, embora diversamente para cada um. Por forma que uma única mesma alma pode, pela virtude do amor, compreender nela própria Aquele que é em Si plenamente suficiente – e incomparavelmente mais ainda – para encher e cumular todas as almas e todos os anjos alguma vez criados. E é este o imenso e maravilhoso milagre do amor cuja obra nunca conhecerá fim, até sempre Deus o fará e que nunca Ele deixará de fazer. Que veja isto, aquele a quem a graça deu olhos para ver, porque é uma infinita benção o ter o sentimento dele, e o contrário é uma desolação infinita.
  4. E é por isso que aquele que foi restabelecido pela graça a permanecer constantemente na guarda dos movimentos da sua vontade – visto que ele não pode estar, por natureza, sem esses movimentos – nunca estará nesta vida sem qualquer gosto da infinita suavidade, nem na beatitude do céu sem o seu pleno e completo alimento. Portanto não te espantes se eu te impilo e te incito para esta obra. Porque ela é a própria obra, como tu vais aprender em seguida, que o ser humano teria prosseguido se ele não tivesse pecado: é a obra para a qual o ser humano foi feito, e todas as coisas para o ser humano, afim de lhe prestarem assistência e o impelirem mais para diante; e também é trabalhando nela que o ser humano será restabelecido de novo. Porque pela falta a este trabalho, cada vez mais profundamente o ser humano cai no pecado, cada vez mais longe e mais longe de Deus. Mas ao meter e guardar nesta obra o seu contínuo esforço, sem mais, o ser humano se ergue cada vez mais do pecado, sempre mais perto e mais perto de Deus.
  5. E é por isso que tu deves tomar portanto grandemente guarda ao tempo, e como tu o despendes: porque nada é mais precioso do que o tempo. Um nada de tempo, tão pequeno quanto seja, e o céu pode ser ganho e perdido. Uma garantia que o tempo é precioso, é que Deus, que é o dispensador dele, nunca nos dá dois tempos ao mesmo tempo mas sempre um depois do outro. Ele faz assim porque Ele não quer reverter a ordem e o curso normal das coisas na Sua criação. Porque o tempo é feito para o ser humano, e não o ser humano para o tempo. E é por isso que Deus, a quem pertence o governo da natureza, não quer, pelo Seu dom do tempo, preceder o movimento da natureza na alma humana, o qual movimento tem a exata medida de um tempo, e nada mais do que um tempo. Por forma a que no Julgamento, o ser humano não terá desculpas a invocar diante de Deus e, prestando contas do tempo despendido, ele não terá que dizer: «Tu deste-me dois tempos ao mesmo tempo, e eu só tinha um movimento de cada vez.»
  6. Mas, cheio de tristeza, eis que tu me dizes: «Como farei? E visto que é assim como tu dizes, como daria eu conta de cada tempo separadamente? Eu, que até este dia, com presentemente vinte e quatro anos de idade, nunca tive cuidado com o tempo. Agora, se eu quisesse retificar, tu sabes perfeitamente, pela própria razão das palavras que tu escreveste mais acima, que isso não é possível nem segundo o curso natural, nem pelo socorro da graça comum, e que eu não saberia presentemente ter cuidado e fazer reparação senão unicamente para os tempos que estão para vir. E para além disso ainda, eu sei seguramente, pelo facto da minha excessiva fragilidade e da minha indolência de espírito, que mesmo para esses tempos que estão para vir, eu não seria de nenhuma maneira capaz de vigiar mais de um em cem. Por forma que eu sou verdadeiramente prisioneiro dessas razões. Pelo amor de Jesus, ajuda-me agora!»
  7. Muito certo e muito exatamente dito: pelo amor de Jesus! Porque no amor de Jesus, lá com efeito estará a tua ajuda e o teu socorro. O amor tem este poder, que todas as coisas então são postas em comum. Também portanto ama Jesus, e tudo o que ele tiver será teu. Ele é, pela Sua Divindade, o criador e dispensador do tempo. Ele é, pela sua humanidade, o guarda verdadeiro do tempo. E pela Sua Divindade em conjunto com a sua humanidade, Ele é o Juiz mais exato, e que pede contas do tempo despendido. É por isso que tu te deves unir a Ele, pelo amor e pela fé, e assim, pelo efeito e virtude dessa ligação, tu perceberás em comum com Ele, e com todos que pelo amor estão também ligados a Ele: é, a saber, com a nossa Senhora Santa Maria que era plena de todas as graças nessa guarda do tempo, depois, com todos os anjos do céu, os quais nunca puderam perder qualquer tempo que fosse, e com todos os anjos do céu e da terra, os quais, pela graça de Jesus, em virtude do amor, tomaram com exatidão um verdadeiro cuidado com o tempo. Vê portanto! Aqui se encontra o reconforto: medita nisto claramente, e para ti tira disto algum proveito.
  8. Mas eu aviso-te de uma coisa entre todas as outras: Eu não vejo quem poderia pretender a ter uma comunhão equitativa assim com Jesus e a Sua Mãe, com os Seus anjos eminentes e os Seus santos, se não fosse alguém que faça por si próprio todos os seus esforços e o seu possível afim de ajudar a graça nessa guarda do tempo. De tal forma que o vejamos pela sua parte, tão pequena quanto ela seja, vir em benefício da comunhão, assim como entre eles, cada um o faz pela sua.
  9. Também portanto dá a tua atenção a esta obra, e à sua maravilhosa maneira, interiormente, na tua alma. Porque desde que ela seja bem concebida, não é mais do que um brusco movimento, e como que inesperado, que se lança vivamente para Deus, tal como uma faísca de carvão. E maravilhoso é contemplar os movimentos que podem, numa hora, fazer-se numa alma que foi disposta para este trabalho. E no entanto basta um único movimento entre todos esses, para que ela tenha, subitamente e completamente, esquecido todas as coisas criadas. Mas imediatamente depois de cada movimento, devido à corrupção da carne, é a queda de novo em qualquer pensamento ou qualquer ação, executada ou não. Mas o que importa? Porque imediatamente depois, ela se lança de novo tão rapidamente como ela tinha feito antes.
  10. E aqui nós podemos fazer uma breve ideia da matéria desta operação, e claramente discernir que ela está longe de todas as visões, falsas imaginações ou bizarrias do pensamento: porque assim, ela não seria produzida por um tão devoto e humilde impulso cego do amor, mas antes por um espírito imaginativo, cheio de orgulho e de curiosidade. Semelhante espírito de orgulho e de curiosidade deve ser sempre rebaixado e duramente calcado com os pés, se verdadeiramente, esta obra, for na pureza do coração que a queremos conceber. Porque alguém, por ter ouvido qualquer coisa desta obra, quer por leitura quer por palavras, imaginasse que se pudesse ou devesse lá chegar pelo trabalho do espírito; e desde então se sentasse e se pusesse a procurar na sua cabeça como ela pode realmente ser, e, nessa curiosidade, fizesse trabalhar a sua imaginação talvez verdadeiramente ao contrário da ordem natural, indo inventar um tipo ou maneira de operar, a qual não é nem corporal nem espiritual – na verdade essa pessoa, quem quer que ela seja, está perigosamente no erro. A um tal ponto, que a menos que Deus, na Sua grande bondade não realize um milagre de misericórdia e não a faça rapidamente deixar esse esforço e vá pedir conselho, humildemente, àqueles que têm experiência, essa pessoa então cairá nas loucuras frenéticas, ou ainda em outros grandes pecados contra o espírito ou ilusões diabólicas, pelas quais essa pessoa pode muito facilmente perder ao mesmo tempo a sua vida e a sua alma, agora e sempre.
  11. E por isso portanto, pelo amor de Deus, mostra prudência nesta obra e não trabalhes de nenhuma maneira nem pelo espírito nem pela imaginação; porque eu digo-te verdadeiramente: ela não pode ser feita pelo trabalho deles. Deixa-os pois, e nunca trabalhes com eles.
  12. E não creias, porque eu falei numa "obscuridade" ou numa "nuvem", que possa ser qualquer nuvem da acumulação dos humores que flutuam no ar, nem também uma obscuridade como dentro da tua casa, de noite, quando a candeia é apagada. Porque uma tal "obscuridade" e uma tal "nuvem", tu as podes imaginar pela curiosidade do espírito, e ter uma diante dos teus olhos no dia mais luminoso do verão, assim como também, pelo contrário, na mais escura noite do inverno, tu podes imaginar uma luz brilhante e clara. Deixa uma tal falsidade. Eu não quero dizer nada disso. Porque quando eu digo "obscuridade", eu quero dizer um falta ou ausência de conhecimento, como é obscura para ti uma coisa que tu não conheces ou que tu esqueceste: visto que tu não a vês com o olho do espírito. E por essa razão, ela não é chamada uma "nuvem do ar", mas uma "nuvem de desconhecimento", a qual está entre ti e o teu Deus.

Notas
  1. Átomo, ou athomo: cerca de 1/6 de segundo. A hora, na idade média, dividia-se em 60 ostenta, das quais cada uma continha 376 atomi. [ ]
  2. Se a alma fosse restabelecida no primitivo estado da alma, tal qual ela estava antes do pecado, então tu serias mestre dos movimentos da tua vontade (ou desejo); e dessa forma nenhuma alma se iria perder, mas todas convergiriam e tenderiam para Deus. [ ]



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