Mestre Eckhart – Feliz o ventre que te trouxe 5


  1. Agora eu pego no outro ponto.
  2. É o que diz Nosso Senhor: «Se o grão de milho caído na terra não perece, fica sozinho e não dá fruto, mas se ele cai na terra e perece, ele produz fruto em cêntuplo.»
  3. «Em cêntuplo», isto significa no sentido espiritual: produz fruto sem número.
  4. Mas o que é o grão de milho que cai na terra, e o que é a terra no qual ele deve cair?
  5. Como eu quero provar desta vez, é o espírito, esse grão de milho a quem se nomeia ou que se chama uma alma humana, e a terra na qual ele deve cair, é a toda louvável humanidade de Jesus Cristo, eis com efeito o campo mais nobre que foi alguma vez criado da terra ou preparado para alguma fecundidade.
  6. O próprio Pai, e esse mesmo Verbo e Espírito Santo, prepararam o campo.
  7. Pois bem! qual era o fruto desse precioso campo de Jesus Cristo na sua humanidade?
  8. Era a sua nobre alma a partir do momento em que aconteceu, pela vontade de Deus e o poder do Espírito Santo, o serem formados a nobre humanidade e o nobre corpo, para a salvação dos seres humanos, no corpo de Nossa Senhora, e onde foi criada a nobre alma, de forma que o corpo e a alma foram unidos num único instante com o Verbo eterno.
  9. Tão rápido e tão verdadeiramente ocorreu a união; desde que o corpo e a alma compreenderam que ele estava lá, nesse mesmo instante, ele compreendeu que se tinham unido nele a natureza humana e a natureza divina, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, um Cristo que é Deus.
  10. Ora notem o modo da sua fecundidade.
  11. Agora eu chamo, desta vez, à sua nobre alma, um grão de milho que pereceu na terra da sua nobre humanidade, pelos seus sofrimentos e pelos seus atos, na tristeza e na morte, segundo a frase que ele próprio diz no momento da sua Paixão: «A minha alma está triste até à morte.»
  12. Ele não queria falar da sua própria alma, quando ela contempla espiritualmente o Bem supremo com o qual ela está unida na sua pessoa e que ele próprio é segundo a união e segundo a pessoa; mesmo no seu supremo sofrimento, ele contemplou esse Bem sem cessar segundo a sua potência superior, tão próximo e absolutamente como ele o faz agora, e nenhuma tristeza aí podia penetrar, nem sofrimento, nem morte.
  13. Porque, na verdade, quando o corpo morreu de dor sobre a cruz, o seu nobre espírito vivia nessa presença.
  14. Mas na parte em que o nobre espírito estava unido como potência intelectual aos sentidos e à vida do corpo santo, nessa medida, Nosso Senhor chamava ao seu espírito criado uma alma, enquanto ela dava a vida ao corpo, estava unida aos sentidos e à potência intelectual; segundo esse modo e nessa medida, a sua alma estava «triste até à morte», com o corpo, porque o corpo devia morrer.
  15. Eu falo agora da corrupção que o grão de milho, a sua nobre alma, sofreu no seu corpo de duas maneiras.
  16. De uma maneira que eu já falei previamente, quer dizer que a nobre alma tinha com o Verbo eterno uma contemplação espiritual de toda a natureza divina.
  17. Desde o primeiro instante em que ele foi criado e unido, ela corrompeu-se de tal forma na terra, no corpo, que, dessa maneira, ela não tinha mais nada a ver com ele, senão que ela estava unida com ele, e vivia com ele.
  18. Mas a vida dela estava como o corpo acima do corpo, diretamente em Deus, sem nenhum obstáculo.
  19. Assim, ela corrompeu-se na terra, no corpo, de tal forma que ela não tinha mais nada a fazer com ele, senão estar unida a ele.
  20. O outro modo da sua corrupção na terra, no corpo, era, como eu já disse precedentemente, quando ela deu a vida ao corpo, e foi unida aos sentidos; ela foi com o corpo cheia de trabalho, de esforços, de vicissitudes, de tristeza «até à morte», por forma que ela não tinha com o corpo e o corpo com ela - para falar deste modo - nunca nem repouso nem descanso nem satisfação indefectíveis, todo o tempo que o corpo foi mortal.
  21. E é o outro modo pelo qual o grão de milho, a nobre alma, se corrompeu desta maneira quanto ao repouso e ao prazo.
  22. Agora, notem o fruto cêntuplo e sem número deste grão de milho.
  23. O primeiro fruto, foi que ele prestou louvor e honra ao Pai, e a toda a natureza divina, pelo facto de que, pelas suas potências superiores, ele não se afastou em nada, nem um instante (do Bem supremo), nem para qualquer operação da potência intelectual, nem por qualquer sofrimento do corpo; apesar disso, ele permanecia sem cessar na contemplação da Divindade, prestando, por uma procriação em retorno, um louvor ininterrupto à senhoria paterna.
  24. Tal é um dos modos da fecundidade do grão de milho na terra da sua nobre humanidade.
  25. O outro modo é este: todo o sofrimento fecundo da sua santa humanidade que ele sofreu nesta vida: a fome, a sede, o frio, o calor, o vento, a chuva, o granizo, a neve, todos os tipos de trabalhos e mais a amargura da morte, tudo isso, ele o ofereceu absolutamente em sacrifício para a honra do Pai celeste; é ao mesmo tempo para ele próprio um louvor e uma fecundidade da parte de todas as criaturas que o querem seguir, vivendo da sua graça e de toda a potência dela.
  26. Vejam: tal é a outra fecundidade da sua santa humanidade, e do grão de milho da sua nobre alma que, por isso, se tornou fecunda com vista ao louvor dele próprio, e para a beatitude da natureza humana. 1

Notas
  1. Na segunda parte do sermão, a mais longa, Eckhart desenvolve o texto de João 12, 25, sobre o grão de milho que deve perecer na terra para produzir fruto em cêntuplo.

    O grão de milho é antes de mais a alma de Cristo que caiu na terra, no campo da sua humanidade.

    O primeiro fruto desse campo, foi quando, para a salvação dos seres humanos, o corpo foi formado no corpo da Virgem Maria, a alma foi criada, o corpo e a alma foram unidos num ponto do tempo com o Verbo de Deus.

    O segundo fruto foi a Paixão.

    A alma pereceu na terra da sua humanidade pelos seus atos e os seus sofrimentos, a tristeza e a morte.

    Ele próprio disse: «A minha alma está triste até à morte.» No entanto, pelas suas potências superiores, a alma continuava a contemplar o Pai celeste.

    O fruto múltiplo do grão de milho, a alma de Cristo, é a homenagem que ela prestou ao Pai, e a toda a natureza divina, o seu louvor constante, o sacrifício consentido. [  ]


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