Mestre Eckhart - Sermão da Pobreza 9


  1. Tudo o que veio alguma vez de Deus tem por fim uma atividade pura, mas a atividade própria do ser humano é a de amar e de conhecer.
  2. Ora, a questão coloca-se em saber no que consiste essencialmente a beatitude.
  3. Certos mestres disseram que ela reside no conhecimento, outros dizem que ela reside no amor, outros dizem que ela reside no conhecimento e no amor, e estes dizem melhor.
  4. Mas nós dizemos que ela não reside nem no conhecimento nem no amor, mas antes que existe na alma "qualquer coisa" de onde fluem o conhecimento e o amor; "aquilo" não conhece nem ama como as outras potências da alma.
  5. Aquele que sabe "aquilo", sabe onde reside a beatitude.
  6. "Aquilo" não tem nem antes nem depois, não espera que nada lhe aconteça, porque "aquilo" não pode nem ganhar nem perder.
  7. É por isso que esse "qualquer coisa" também está privado de saber que Deus age nele, mas antes: esse "qualquer coisa" desfruta ele próprio de si próprio, segundo o modo de Deus.
  8. Nós dizemos portanto que o ser humano deve estar quite e privado de Deus, de tal forma que não saiba nem conheça a ação de Deus nele; é assim que o ser humano pode possuir a pobreza.
  9. Os mestres dizem que Deus é um ser, um ser dotado de intelecto, e que ele conhece todas as coisas.
  10. Ora nós dizemos: Deus não é nem ser, nem dotado de intelecto, e ele não conhece nem isto nem aquilo.
  11. Assim portanto, Deus está liberto de todas as coisas, e é por isso que ele é todas as coisas.
  12. Aquele portanto que deve ser pobre em espírito deve ser pobre de todo o seu saber próprio, de forma que ele não saiba nada de nenhuma coisa, nem de Deus, nem da criatura, nem si próprio.
  13. É portanto necessário que o ser humano deseje não poder saber nada, nem conhecer das obras de Deus.
  14. Desta maneira o ser humano pode ser pobre do seu próprio saber. 1

Notas
  1. «Tudo o que veio alguma vez de Deus tem por fim uma atividade pura, mas a atividade própria do ser humano é a de amar e de conhecer.»

    Encontramos aqui uma questão que Mestre Eckhart abordou várias vezes: em que é que consiste essencialmente a beatitude?

    Ele nega primeiro que ela resida no conhecimento ou no amor, depois, sem dar imediatamente uma resposta positiva, ele regressa à noção do "qualquer coisa" na alma, na qual nós reconhecemos "a centelha", sobre a qual ele dá uma nova definição.

    Como todas as outras, esta só poderia ser balbuciante: «"Aquilo" não tem nem antes nem depois, não espera que nada lhe aconteça, porque "aquilo" não pode nem ganhar nem perder. É por isso que esse "qualquer coisa" também está privado de saber que Deus age nele, mas antes: esse "qualquer coisa" desfruta ele próprio de si próprio, segundo o modo de Deus.»

    Estas palavras misteriosas designam aliás a região no ser humano «na qual reside a beatitude».

    Nós deveremos provavelmente ver aí uma espécie de espreitadela extremamente discreta - é sempre assim com Eckhart - sobre as profundezas da sua experiência mística.

    Esta consistiria então em tornar-se consciente do "qualquer coisa" dentro da alma que não cessa nunca de estar unido a Deus, portanto de estar na beatitude.

    Eckhart diz, de passagem, uma palavras sobre Deus que se relacionam com o seu propósito sobre a pobreza, onde culmina o paradoxo: os mestres dizem que Deus é um ser dotado de intelecto, e que ele conhece todas as coisas.

    Ora, nós dizemos: Deus não é nem ser, nem dotado de intelecto, e ele não conhece nem isto nem aquilo, Deus está desprendido de todas as coisas, e é por isso que ele é todas as coisas.

    Estes paradoxos, de que Mestre Eckhart nunca se cansa, são apenas a retoma dos raciocínios clássicos: se chamamos «ser» às coisas que constituem o nosso universo, então é preciso dizer que Deus não é, mas se chamamos «ser» principalmente a Deus, então são as coisas que são «um puro nada».

    Nós reencontramos portanto simplesmente nestes paradoxos aquilo a que os teólogos medievais chamavam a "via negativa" e a "via afirmativa" no conhecimento de Deus.

    Estas duas tendências ressaltam muito bem numa passagem do sermão Quasi stella matutina: «Certos mestres de espírito frustre dizem que Deus é um ser puro; ele está tão elevado acima do ser, como o mais elevado dos anjos está acima de um mosquito. Eu também falaria falsamente se dissesse que Deus é um ser, como se dissesse que o sol é pálido ou negro. Deus não é isto nem aquilo... Mas quando eu disse que Deus não era um ser, e que ele estava acima do ser, com isso eu não lhe contestei o ser, pelo contrário, eu atribui-lhe um ser mais elevado.»

    Aquele que deve ser pobre em espírito não deve saber nada, de coisa nenhuma, nem de Deus, nem da criatura, nem dele próprio. [  ]


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