Mestre Eckhart – Tratado do Desprendimento 7


  1. Ora tu deves saber que, desde toda a eternidade, Deus esteve e está ainda nesse desprendimento imutável.
  2. E sabe: quando Deus criou o céu e a terra e todas as criaturas, isso não mexeu mais com o seu desprendimento imutável, do que se nenhuma criatura alguma vez tivesse sido criada.
  3. Digo mais: todas as orações e as boas obras, que o ser humano possa realizar no tempo, perturbam tanto o desprendimento de Deus, como se nunca orações e boas obras tivessem sido realizadas no tempo; e Deus não é menos generoso, nem bem disposto para o ser humano, do que se este nunca tivesse rezado ou realizado boas obras.
  4. Digo ainda mais: quando o Filho, na divindade, se quis tornar homem, tornou-se e sofreu o martírio, sem que o desprendimento imutável de Deus fosse mais perturbado, do que se ele nunca se tivesse feito homem.
  5. Tu poderás dizer: Eu compreendo bem que todas as orações e todas a boas obras sejam perdidas porque Deus não as acolhe de tal modo que qualquer um o possa perturbar com elas, mas diz-se no entanto que Deus quer que lhe sejam pedidas todas as coisas.
  6. Aqui, tu deves escutar-me bem e compreender corretamente, se puderes, que Deus, no seu primeiro olhar eterno - se nós podermos admitir aqui um primeiro olhar - viu todas as coisas tais quais elas se deviam produzir, e viu nesse mesmo olhar quando e como ele queria formar as criaturas, e quando o Filho se queria tornar homem e sofrer; ele viu também a mais pequena oração, e a mais pequena boa obra que o ser humano devia realizar; ele viu que oração, e que piedade ele queria e devia atender; ele viu que tu vais querer amanhã invocá-lo e rezar-lhe com seriedade, e Deus não quer atender amanhã a tua invocação e a tua oração, porque ele a atendeu na sua eternidade antes de tu seres um ser humano.
  7. Mas se a tua oração não é insistente e séria, Deus não quer agora recusar de a atender, porque ele já recusou na sua eternidade.
  8. E assim Deus viu todas as coisas no seu primeiro olhar eterno, e Deus não cria nada de novo, tendo sido todas as coisas realizadas por ele de antemão.
  9. E assim, Deus permanece sempre no seu desprendimento imutável; no entanto, a oração e as boas obras dos seres humanos não são no entanto perdidas, porque aquele que faz o bem é remunerado, e aquele que faz o mal é remunerado em consequência.
  10. Foi o que disse S. Agostinho no quinto livro Da Trindade, no primeiro capítulo: Deus autem..., quer dizer: Deus nos guarde de dizer que ele ama alguém no tempo, porque para ele nada é passado nem futuro: ele amou todos os santos antes do mundo ter sido criado, tais como ele os viu de antemão.
  11. E quando chega o tempo, em que ele torna visível no tempo aquilo que ele viu na eternidade, as gentes imaginam que Deus sentiu por eles um amor novo; e da mesma forma quando ele está colérico ou concede um bem, nós somos transformados e ele permanece imutável, da mesma forma que o sol magoa os olhos doentes e faz bem aos olhos sãos, e no entanto a luz do sol permanece imutável em si própria.
  12. S. Agostinho trata deste assunto no livro doze Da Trindade, capítulo quatro: Nam deus non ad tempus videt, nec aliquid fit novi in eius visione: Deus não vê segundo o tempo, e nele também não há uma visão nova.
  13. Isidoro fala no mesmo sentido no livro Do Bem supremo: «Muitas gentes perguntam o que fazia Deus antes de criar o céu e a terra, ou então quando é que Deus teve a vontade nova de formar as criaturas?»
  14. E ele responde assim: «Nunca houve em Deus uma vontade nova, porque apesar da criatura não existir em si própria tal como existe agora, ela estava eternamente em Deus e na razão de Deus.»
  15. Deus não criou o céu e a terra como nós dizemos no tempo: «Que assim seja!» Porque todas as criaturas estão expressas no Verbo eterno.
  16. Nós podemos ainda citar o que o Senhor disse a Moisés quando Moisés lhe perguntou: «Senhor, se o Faraó me perguntar quem tu és, o que devo responder?» O Senhor respondeu: «Diz-lhe: Aquele que é, enviou-me.» Quer dizer, aquele que é imutável em si, enviou-me.


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