Mestre Eckhart – Tratado do Desprendimento 3


  1. Os mestres também louvam mais a humildade do que muitas outras virtudes.
  2. Mas eu louvo mais o desprendimento do que qualquer humildade, e eis porquê: a humildade pode existir sem o desprendimento, enquanto que o perfeito desprendimento não pode existir sem a perfeita humildade, porque a perfeita humildade tende ao aniquilamento de si próprio.
  3. Ora o desprendimento está tão próximo do nada que não pode haver nada entre o perfeito desprendimento e o nada.
  4. É por isso que não pode haver desprendimento sem perfeita humildade.
  5. Ora duas virtudes sempre valeram mais do que uma.
  6. A segunda razão pela qual eu louvo mais o desprendimento do que a humildade, é porque a perfeita humildade se curva abaixo de todas as criaturas e que, curvando-se assim, a pessoa sai de si própria para ir em direção às criaturas, enquanto que o desprendimento permanece em si próprio.
  7. Ora sair de si não consegue ser suficientemente nobre por forma a que permanecer em si próprio não seja muito mais nobre.
  8. É por isso que o profeta David disse: Omnia gloria eius filiae regis ab intus, quer dizer: Toda a honra da filha do rei vem do interior.
  9. O desprendimento perfeito não considera de modo nenhum que se deve curvar abaixo de qualquer criatura, nem acima de qualquer criatura; ele não quer estar nem acima, nem abaixo, ele quer estar em si próprio, sem considerar o amor ou o sofrimento de quem quer que seja, ele não quer nem a igualdade, nem a desigualdade com criatura nenhuma, ele não quer nem isto nem aquilo; ele quer ser, e mais nada.
  10. Mas querer ser isto ou aquilo, ele não o quer, porque quem quer ser isto ou aquilo quer ser alguma coisa, enquanto que o desprendimento não quer ser nada.
  11. É por isso que todas as coisas estão à frente dele sem serem importunadas.
  12. Ora qualquer um poderia dizer: No entanto, todas as virtudes eram perfeitas em Nossa Senhora, portanto devia haver nela um desprendimento perfeito.
  13. Se no entanto o desprendimento é mais perfeito que a humildade, porque é que Nossa Senhora louvou a sua humildade, e não o seu desprendimento, quando ela disse: Quia respexit dominus humilitatem ancillae suae..., quer dizer: Ele considerou a humildade da sua serva - então porque é que ela não disse: Ele considerou o desprendimento da sua serva?
  14. Eu respondo dizendo que em Deus há desprendimento e humildade, na medida em que nós podemos falar das virtudes de Deus.
  15. Ora tu deves saber que a amável humildade fez com que Deus se inclinasse para a natureza humana, enquanto que o desprendimento permanecia imóvel em si quando Deus se fez homem, e da mesma forma se comportou quando Deus criou o céu e a terra, como eu te explicarei em seguida.
  16. E porque Nosso Senhor, quando ele se quis fazer homem, permaneceu imóvel no seu desprendimento, a Nossa Senhora sabia bem que ele desejava dela a mesma coisa e que, nessa circunstância, ele considerava a sua humildade e não o seu desprendimento.
  17. É por isso que ela permaneceu imóvel no seu desprendimento e se louvou da sua humildade, e não do seu desprendimento.
  18. E se ela tivesse mencionado nem que fosse com uma palavra o seu desprendimento, se ela tivesse dito: Ele considerou o meu desprendimento, o desprendimento dela teria sido perturbado e não teria sido tão total nem tão perfeito, porque assim ele teria saído de si próprio.
  19. Ora qualquer saída, por mais pequena que seja, não se pode dar sem prejuízo para o desprendimento.
  20. E assim, tu tens a razão de porque é que a Nossa Senhora louvou a sua humildade, e não o seu desprendimento.
  21. É por isso que o profeta disse: Audiam quid loquatur in me dominus deus, quer dizer: Eu me calarei e escutarei o que o meu Senhor e meu Deus me disser. É como se ele dissesse: Se Deus me quer falar, que ele venha até mim, eu não quero sair.


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