Mestre Eckhart - Sermão da Pobreza


  1. A beatitude abriu a sua boca de sabedoria e disse: «Felizes são os pobres em espírito porque o reino dos céus é deles.» 1
  2. Todos os anjos, e todos os santos, e tudo o que alguma vez nasceu, deve fazer silêncio quando fala a sabedoria do Pai, porque toda a sabedoria dos anjos, e de todas as criaturas, é uma pura loucura diante da sabedoria insondável de Deus. Esta disse que os pobres são felizes.
  3. Há duas espécies de pobreza: uma pobreza exterior, que é boa, e é necessário louvá-la altamente no ser humano que a pratica voluntariamente, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque ele próprio a praticou sobre a terra. Desta pobreza eu não quero falar mais por agora; mas existe ainda uma outra pobreza, uma pobreza interior, aquela que é preciso entender pelas palavras de Nosso Senhor quando ele diz: «Felizes são os pobres em espírito.»
  4. Eu peço-vos que vocês sejam assim para poderem compreender este discurso, porque eu vos digo na eterna verdade: se vocês não estiverem conformes a esta verdade, da qual nós queremos agora falar, vocês não me podem compreender. 2
  5. Certas pessoas perguntaram-me o que é a pobreza em si própria, e o que é um ser humano pobre. Nós queremos responder a isso. 3
  6. O bispo Alberto disse que um ser humano pobre é aquele que não se pode satisfazer com todas as coisas criadas por Deus, e são palavras certas. Mas nós diremos ainda melhor, e consideraremos a pobreza segundo um significado mais elevado: é um ser humano pobre aquele que não quer nada, e que não sabe nada, e que não tem nada. Falaremos destes três pontos, e eu peço-vos, pelo amor de Deus, de compreenderem esta verdade se puderem, e se não a compreenderem, não se preocupem, porque eu quero falar de uma tal verdade que poucas pessoas boas a podem compreender. 4
  7. Em primeiro lugar nós dizemos que é um ser humano pobre aquele que não quer nada. Certas gentes não compreendem bem este sentido; são as gentes que se agarram à penitência e aos exercícios exteriores, os quais estas gentes consideram ser importantes, porque elas se procuram neles a si próprias. Que Deus tenha piedade delas, por terem um tão fraco conhecimento da verdade divina. Estas gentes são ditas santas com base nas aparências exteriores, mas interiormente são burras, porque elas não sabem discernir a verdade divina. Estas pessoas repetem bem que um ser humano pobre é aquele que não quer nada, mas elas interpretam isso no sentido em que o ser humano deve viver sem nunca realizar em nada a sua vontade, e que para além disso se deve esforçar por realizar a muito cara vontade de Deus. Essas pessoas têm uma posição certa, porque a opinião delas é boa, nós as louvaremos portanto. Que Deus, na sua misericórdia, lhes dê o reino dos céus. Mas eu, eu digo na verdade divina que estas pessoas não são pessoas pobres, nem semelhantes a pessoas pobres. Elas estão em grande consideração aos olhos das gentes que não sabem nada de melhor, mas eu digo que são burras, que não entendem nada da verdade divina. Devido à sua boa intenção, que elas obtenham o reino dos céus, mas desta pobreza da qual nós queremos agora falar, elas não sabem nada. 5
  8. Se me perguntassem o que é um ser humano pobre, que não quer nada, eu responderia: todo o tempo que o ser humano tem como sua vontade querer realizar a muito cara vontade de Deus - este ser humano não tem a pobreza da qual nós queremos falar, porque este ser humano tem uma vontade pela qual ele quer satisfazer a vontade de Deus, e essa não é a verdadeira pobreza. Porque se o ser humano deve ser verdadeiramente pobre, ele deve estar tão desprendido da sua vontade criada, como quando ele estava quando ele (ainda) não existia. Porque eu vos digo, pela verdade eterna: todo o tempo que vocês tiverem a vontade de realizar a vontade de Deus, e que vocês tiverem o desejo da eternidade, e o desejo de Deus, vocês não são pobres, porque só é um ser humano pobre aquele que não quer nada, e que não deseja nada. 6
  9. Quando eu estava na minha causa primeira, eu não tinha Deus, e eu era a causa de mim próprio; então eu não queria nada, eu não desejava nada, porque eu era um ser livre, eu conhecia-me a mim próprio, desfrutando da verdade. 7 Eu queria-me a mim próprio, e não queria nada mais; aquilo que eu queria, eu era-o, e aquilo que eu era, eu queria-o; e lá eu estava desprendido de Deus e de todas as coisas, mas quando, pela minha livre vontade, eu saí, e recebi o meu ser criado, eu passei a ter um Deus, porque antes que existissem as criaturas, Deus não era "Deus", mas ele era aquilo que ele era. Mas quando passaram a existir as criaturas, e quando elas receberam o seu ser criado, Deus não era mais "Deus" em si próprio, ele passou a ser "Deus" nas criaturas. 8
  10. Ora, nós dizemos que Deus, enquanto ele é "Deus", não é o fim supremo da criatura, porque enquanto ela está em Deus, a mínima criatura tem a mesma riqueza que ele. E se fosse possível que uma mosca tivesse um intelecto, e fosse capaz de procurar intelectualmente o abismo eterno do ser divino de onde ela saiu, diríamos que Deus, com tudo aquilo que ele é enquanto "Deus", não poderia dar a esta mosca plenitude e satisfação. É por isso que nós pedimos a Deus para sermos desprendidos de "Deus", e para acolhermos a verdade, e para desfrutarmos dela eternamente, lá onde os anjos mais elevados, e a mosca, e a alma são iguais, lá onde eu estava, onde eu queria aquilo que eu era, e era aquilo que eu queria. Nós dizemos portanto: se o ser humano deve ser pobre em vontade, ele deve também querer pouco, e desejar que ele quisesse e desejasse como quando ele não existia. E eis, de que maneira, é pobre o ser humano que não quer nada. 9
  11. Em segundo lugar, é um ser humano pobre aquele que não sabe nada. Nós dissemos por vezes que o ser humano deveria viver como se ele não vivesse nem para ele próprio, nem para a verdade, nem para Deus. Mas agora nós dizemos de modo diferente, e iremos mais longe dizendo que o ser humano (que deve ter esta pobreza) deve viver de tal forma que ele ignore mesmo que ele não vive nem para si próprio, nem para a verdade, nem para Deus; bem melhor, ele deve estar de tal forma desprendido de todo o conhecimento que ele não sabe, nem reconhece, nem sente que Deus vive nele; mais ainda, ele deve estar desprendido de todo o conhecimento que viva nele, porque quando o ser humano estava no ser eterno de Deus, nada mais vivia nele (para além do ser eterno de Deus), e o que vivia lá, era ele próprio. Nós dizemos portanto que o ser humano deve estar tão desprendido do seu próprio saber, tal como ele estava quando ele (ainda) não existia; que o ser humano deixe Deus operar aquilo que Deus quer, e que o ser humano esteja desprendido. 10
  12. Tudo o que veio alguma vez de Deus tem por fim uma atividade pura, mas a atividade própria do ser humano é a de amar e de conhecer. Ora, a questão coloca-se em saber no que consiste essencialmente a beatitude. Certos mestres disseram que ela reside no conhecimento, outros dizem que ela reside no amor, outros dizem que ela reside no conhecimento e no amor, e estes dizem melhor. Mas nós dizemos que ela não reside nem no conhecimento nem no amor, mas antes que existe na alma "qualquer coisa" de onde fluem o conhecimento e o amor; "aquilo" não conhece nem ama como as outras potências da alma. Aquele que sabe "aquilo", sabe onde reside a beatitude. "Aquilo" não tem nem antes nem depois, não espera que nada lhe aconteça, porque "aquilo" não pode nem ganhar nem perder. É por isso que esse "qualquer coisa" também está privado de saber que Deus age nele, mas antes: esse "qualquer coisa" desfruta ele próprio de si próprio, segundo o modo de Deus. Nós dizemos portanto que o ser humano deve estar quite e privado de Deus, de tal forma que não saiba nem conheça a ação de Deus nele; é assim que o ser humano pode possuir a pobreza. Os mestres dizem que Deus é um ser, um ser dotado de intelecto, e que ele conhece todas as coisas. Ora nós dizemos: Deus não é nem ser, nem dotado de intelecto, e ele não conhece nem isto nem aquilo. Assim portanto, Deus está liberto de todas as coisas, e é por isso que ele é todas as coisas. Aquele portanto que deve ser pobre em espírito deve ser pobre de todo o seu saber próprio, de forma que ele não saiba nada de nenhuma coisa, nem de Deus, nem da criatura, nem si próprio. É portanto necessário que o ser humano deseje não poder saber nada, nem conhecer das obras de Deus. Desta maneira o ser humano pode ser pobre do seu próprio saber. 11
  13. Em terceiro lugar é pobre o ser humano que não possui nada. Muitas gentes disseram que a perfeição consiste em não possuir nada de bens materiais, e é bem verdade num sentido, para aquele que o faz voluntariamente. Mas esse não é o sentido em que eu penso. 12
  14. Eu disse previamente que é um ser humano pobre aquele que quer não realizar a vontade de Deus, mas que vive de tal forma que está liberto quer da sua vontade própria quer da vontade de Deus, tal como ele estava quando ele (ainda) não existia. Nós dizemos desta pobreza que é a pobreza mas elevada. Em segundo lugar, nós dissemos que é um ser humano pobre aquele que não sabe nada das obras que Deus opera nele. Aquele que está assim liberto de saber e de conhecer, tanto quanto Deus está liberto de todas as coisas - é a mais pura pobreza. Mas a terceira, da qual nós queremos falar agora, é a pobreza mais clara: a do ser humano que não tem nada.
  15. Notem isto com aplicação e seriedade! Eu disse frequentemente, e os grandes mestres disseram-no também, que o ser humano deve ser liberto de todas as coisas, e de todas as obras, interiores e exteriores, de tal forma que ele possa ser um lugar próprio de Deus, onde Deus possa operar. Agora nós dizemos de modo diferente. Se o ser humano é liberto de todas as criaturas, e de Deus, e dele próprio, mas se ele ainda está tal que Deus encontra nele um lugar onde operar, nós dizemos: todo o tempo em que isto acontecer neste ser humano, este ser humano não é pobre da mais extrema pobreza. Porque, nas suas operações, Deus não visa um lugar no ser humano, onde ele possa operar: a pobreza em espírito, é que o ser humano esteja de tal forma liberto de Deus, e de todas as suas obras, que Deus, se ele quer operar na alma, seja ele próprio o lugar onde ele quer operar, e isso, ele o faz de boa vontade. Porque, quando ele encontra o ser humano tão pobre, Deus opera a sua própria obra, e o ser humano acolhe assim Deus nele, e Deus é o lugar próprio das suas operações, pelo facto de que Deus opera em si próprio. Aqui, nesta pobreza, o ser humano reencontra o ser eterno que ele (antes) foi, que ele é agora, e que ele permanecerá para sempre. 13
  16. São Paulo disse: «Tudo o que eu sou, eu sou-o pela graça de Deus». Ora este discurso aqui parece situar-se acima da graça, e acima do ser, e acima do conhecimento, e acima da vontade, e acima de todo desejo - como então é que as palavras de São Paulo podem ser verdadeiras? Sobre isto responder-se-á que as palavras de São Paulo são verdadeiras. Era necessário que a graça de Deus estivesse nele porque o que a graça operou nele, foi que o que era "acidente" se tornasse "substância". Quando a graça terminou a sua obra, Paulo permaneceu aquilo que ele era (antes).14
  17. Nós dizemos portanto que o ser humano deve ser tão pobre que ele não seja, nem tenha nele, nenhum lugar onde Deus possa operar. Enquanto ele reservar um lugar, ele guarda uma distinção. É por causa disso que eu peço a Deus que ele me liberte de "Deus", porque o meu ser essencial está acima de "Deus" enquanto nós apreendemos Deus como sendo o princípio das criaturas. Neste mesmo ser de Deus, onde Deus está acima do ser e acima da distinção, eu era eu próprio, eu queria-me a mim próprio, eu conhecia-me a mim próprio para fazer este ser humano [que eu sou]. É por isso que eu sou a causa de mim próprio segundo o meu ser que é eterno, e não segundo o meu devir que é temporal. É por isso que eu sou não-nascido (ungeboren), e segundo o meu modo não-nascido, eu nunca posso morrer. Segundo o meu modo não-nascido, eu existi eternamente, e eu sou agora, e eu devo permanecer eternamente. Aquilo que eu sou segundo o meu nascimento, deve morrer e ser aniquilado, porque é mortal, é por isso que isso se deve corromper com o tempo. No meu nascimento [eterno], todas as coisas nasceram, e eu fui a causa de mim mesmo, e de todas as coisas, e se eu tivesse querido eu não existiria, e todas as coisas não existiriam, e se eu não existisse, "Deus" também não existiria. Que Deus seja "Deus", eu sou uma causa; se eu não existisse, Deus não seria "Deus". Não é necessário saber isso. 15
  18. Um grande mestre disse que o seu irromper é mais nobre que a sua difusão, e é verdade. Quando eu fluía de Deus, todas as coisas disseram: Deus é, e isso não me pode tornar feliz, porque devido a isso eu reconheço-me como sendo criatura. Mas (pelo contrário) no irromper, onde eu sou liberto da minha própria vontade, e da vontade de Deus, e de todas as obras, e de Deus ele próprio, eu estou acima de todas as criaturas, e não sou nem "Deus" nem criatura, mas antes eu sou aquilo que eu era, e o que eu devo permanecer agora, e sempre. Lá, eu recebo um impulso que me deve levar acima de todos os anjos. Neste impulso, eu recebo uma riqueza tal que Deus não me pode ser suficiente segundo tudo o que ele é "Deus", e segundo todas as suas obras divinas. Com efeito, o dom que eu recebo neste irromper, é que eu e Deus, somos um. Então, eu sou aquilo que eu era, e lá eu não cresço nem diminuo, porque eu sou lá um motor imóvel que move todas as coisas. Então, Deus não encontra lugar no ser humano, porque com esta pobreza, o ser humano adquire aquilo que ele foi eternamente, e aquilo que ele permanecerá para sempre. Então, Deus é um com o espírito, e é a suprema pobreza que se pode encontrar. 16
  19. Que aquele que não compreende este discurso não se aflija no seu coração. Todo o tempo que o ser humano não é semelhante a esta verdade, ele não pode compreender este discurso, porque é uma verdade sem véu que veio diretamente do coração de Deus. 17
  20. Que Deus nos ajude afim de que nós possamos viver para a encontrar eternamente. Amém. 18

Notas
  1. Por vezes chamado "Sermão da Pobreza", o Sermão 52 é um dos sermões mais famosos de Mestre Eckhart. Foi traduzido em latim e usado por um número de místicos posteriores, incluindo João Ruysbroec. O "Sermão da Pobreza" representa Eckhart no seu ponto mais desafiador. A organização do sermão, com a sua tripla análise da verdadeira pobreza - querer nada, saber nada, e ter nada - tem uma clareza incomum nos sermões de Mestre Eckhart. Parece estar entre os últimos sermões de Eckhart, possivelmente pregado em Colónia em 1327 para a Festa de Todos os Santos. A natureza da pobreza era um dos assuntos religiosos mais controversos dos séculos treze e catorze. A resposta de Eckhart ao que constitui a verdadeira pobreza caracteristicamente passa rapidamente pela pobreza exterior para explorar a pobreza interior da aniquilação da vontade que nos leva de volta para o nosso estado anterior à criação e para além dele, irrompendo até à união idêntica com Deus, para além de Deus. Estudos recentes mostraram que algumas frases deste sermão ecoam o livro anónimo Espelho das Almas Simples. [  ]
  2. Este sermão é provavelmente o mais difícil, de todos os que nos foram transmitidos, de Mestre Eckhart.
       É por isso que ele previne os auditores de que se eles não estão conformes à verdade que ele vai expor, eles não o poderão compreender. Um pouco mais adiante, ele insiste para que os que não o compreendam não fiquem preocupados, e de cada vez ele exprime-se com alguma solenidade: «... Eu vos digo na eterna verdade... eu peço-vos pelo amor de Deus... » Também, no fim do sermão: «... porque é uma verdade sem véu que veio diretamente do coração de Deus».
       No entanto, quais quer que sejam as dificuldades que este texto apresenta, ele não está isolado na obra de Eckhart. Ao proceder à sua análises e a comparações, encontraremos temas que lhe são e nos são familiares. [  ]
  3. A pobreza é aqui apenas o tema ocasional que permite reunir as intuições mais profundas de Mestre Eckhart: a identidade entre o fundo de Deus e o fundo do ser humano, a natureza "não-nascida" do ser humano, a dialética da "douta ignorância", a ultrapassagem de tudo o que pode ser um objeto para a vontade, a insistência sobre a vacuidade que era a nossa antes de nascermos neste mundo, a necessidade de se libertar de Deus enquanto face a face do ser humano, a felicidade como consequência da recuperação de Deus por ele próprio no ser humano. [  ]
  4. A pobreza exterior é boa, diz Eckhart, e deve ser louvada, tendo-a Nosso Senhor praticado ele próprio, mas não é dessa que ele quer falar. O bispo Alberto (Alberto, o Grande, foi bispo de Ratisbona em 1260, e demissionário em 1262) disse que uma pessoa pobre é aquela que não se pode contentar com todas as coisas criadas por Deus, mas ele, Mestre Eckhart, toma a pobreza segundo um significado mais elevado: é uma pessoa pobre aquela que não quer nada, que não sabe nada, e que não tem nada. [  ]
  5. Em primeiro lugar, aquele que não quer nada. Eckhart pensa primeiro naqueles que se submetem a uma regra de vida severa. Apesar de ele lhes desejar a misericórdia divina e o reino dos céus, a condescendência com a qual ele sempre os viu vai agora até ao desprezo declarado: ele trata-os de burros, e por duas vezes. Os cristãos que o escutam, até ao presente, seguiram-no: eles sabem que devem renunciar à sua vontade própria, mas é-lhes sem dúvida mais difícil admitir que devem renunciar a querer realizar a vontade de Deus. [  ]
  6. Talvez seja necessário ler a frase «... todo o tempo que vocês têm a vontade de realizar a vontade de Deus...» em função daquilo que se segue: «... e o desejo da eternidade e de Deus, vocês não são pobres, porque só é uma pessoa pobre aquela que não quer nada e não deseja nada». Podia-se então pensar que o predicador liga esta vontade de realizar a vontade de Deus ao desejo da eternidade bem-aventurada e de Deus. Não seria então o primeiro sermão que convidaria os seus auditores ao mais total desinteresse espiritual. No sermão 1, Intravit Iesus in templum..., ele comparou aos mercadores do Templo àqueles que realizam a vontade de Deus para obterem qualquer coisa que seja, mesmo que seja a beatitude eterna. [  ]
  7. «Quando eu estava na minha causa primeira, eu não tinha Deus, e eu era a causa de mim próprio; então, eu não queria nada, eu não desejava nada, porque eu era um ser livre, eu conhecia-me a mim próprio, desfrutando da verdade. Eu queria-me a mim próprio, e não queria nada mais; aquilo que eu queria, eu era-o, e aquilo que eu era, eu desejava-o, e lá eu estava desprendido de Deus e de todas as coisas...»
       Para compreender este texto, e alguns dos que se seguem, é preciso regressar à distinção que Mestre Eckhart estabelece entre got (Deus trinitário e criador) e diu gotheit, a Divindade, abismo sem fundo, deserto, origem, que ele nomeia aqui causa primeira. «A distinção entre Deus e a Divindade respeita dois aspectos - exterior e interior - sob os quais as criaturas in via concebem a mesma realidade simples, opondo dois níveis na sequência dum erro de óptica inevitável aqui em baixo» (Vladimir Lossky).
       Eckhart trata aqui da existência eterna do ser humano, anterior à criação, quando ele ainda não era mais que uma ideia no ato puro, na Origem, o bullitio, o bulício anterior a tudo, para retomar a expressão que Mestre Eckhart emprega nas suas obras latinas.
       Mas quem a compreendeu melhor, e a explicou melhor, que um dos seus primeiros e mais fieis discípulos, Henrique Suso? Ele escreve no Livro da Verdade:
    «Verdade eterna, mas como é que as criaturas existem em Deus desde toda a eternidade?
    - Elas estavam lá como no seu exemplar eterno.
    - O que devemos entender por exemplar? - É a sua essência eterna enquanto ela permite à criatura atingi-la duma maneira participada. E nota que todas as criaturas são eternamente Deus em Deus, e não tiveram lá nenhuma diferença fundamental. Elas são a mesma vida, a mesma essência, o mesmo poder enquanto elas estão em Deus; elas são o mesmo Um, e nada de menos.» [  ]
  8. «Mas quando pela minha livre vontade, eu recebi o meu ser criado, eu tive um Deus, porque antes que existissem as criaturas, Deus não era "Deus"», bem pelo contrário: ele era o que ele era.
       Continuação do comentário de Henrique Suso:
       «Mas quando as criaturas saíram de Deus, tomando o seu ser próprio, cada uma passou a ter a sua substância particular diferente, com a sua própria forma que lhe dá a sua essência natural... E por essa difusão, todas as criaturas encontraram o seu Deus, porque quando a criatura compreende que ela é uma criatura, ela reconhece o seu criador e o seu Deus.» [  ]
  9. Ora, esse Deus criador não seria capaz de satisfazer nem mesmo a mosca se, dotada de intelecto por uma das hipóteses paradoxais de Eckhart, ela procurasse o abismo eterno do ser divino de onde ela saiu. Ele tinha-nos dito no sermão 2, a propósito do castelo da alma: «Se Deus deve alguma vez penetrá-lo com o seu olhar, isto custar-lhe-ia todos os seus nomes divinos, e a propriedade das suas Pessoas. Ele tem que as deixar todas no exterior para que o seu olhar lá penetre. É preciso que ele seja o Um na sua simplicidade, sem nenhum modo nem propriedade, lá onde ele não é neste sentido nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo, e onde ele é no entanto uma qualquer coisa que não é nem isto nem aquilo.»
       «Ele era aquilo que ele era... uma qualquer coisa que não é nem isto nem aquilo...» Estas expressões reúnem-se na sua indeterminação tanto é difícil de definir o que está acima de qualquer nome: «É por isso que nós pedimos a Deus para sermos libertos de Deus, e de acolhermos a verdade, e de rejubilarmos eternamente lá onde os anjos mais elevados, e a mosca, e a alma são iguais.» [  ]
  10. Em segundo lugar, é pobre o ser humano que não sabe nada, que não sabe que vive para ele próprio, nem para a verdade, nem para Deus. Ele deve ser desprendido de todo o saber, e de todo o conhecimento, mesmo de saber, de reconhecer, e de sentir que Deus vive nele, «porque quando o ser humano estava no ser eterno de Deus, ninguém vivia nele, e quem vivia lá, era ele próprio».
       É preciso sem dúvida aproximar estas palavras sobre a exigência do não-saber, dos textos onde, como em Mulier, venit hora, Eckhart insiste com tanto vigor sobre a exigência de viver «sem porquê». [  ]
  11. «Tudo o que veio alguma vez de Deus tem por fim uma atividade pura, mas a atividade própria do ser humano é a de amar e de conhecer.» Encontramos aqui uma questão que Mestre Eckhart abordou várias vezes: em que é que consiste essencialmente a beatitude? Ele nega primeiro que ela resida no conhecimento ou no amor, depois, sem dar imediatamente uma resposta positiva, ele regressa à noção do "qualquer coisa" na alma, na qual nós reconhecemos "a centelha", sobre a qual ele dá uma nova definição. Como todas as outras, esta só poderia ser balbuciante: «"Aquilo" não tem nem antes nem depois, não espera que nada lhe aconteça, porque "aquilo" não pode nem ganhar nem perder. É por isso que esse "qualquer coisa" também está privado de saber que Deus age nele, mas antes: esse "qualquer coisa" desfruta ele próprio de si próprio, segundo o modo de Deus.»
       Estas palavras misteriosas designam aliás a região no ser humano «na qual reside a beatitude». Nós deveremos provavelmente ver aí uma espécie de espreitadela extremamente discreta - é sempre assim com Eckhart - sobre as profundezas da sua experiência mística. Esta consistiria então em tornar-se consciente do "qualquer coisa" dentro da alma que não cessa nunca de estar unido a Deus, portanto de estar na beatitude.
       Eckhart diz, de passagem, uma palavras sobre Deus que se relacionam com o seu propósito sobre a pobreza, onde culmina o paradoxo: os mestres dizem que Deus é um ser dotado de intelecto, e que ele conhece todas as coisas. Ora, nós dizemos: Deus não é nem ser, nem dotado de intelecto, e ele não conhece nem isto nem aquilo, Deus está desprendido de todas as coisas, e é por isso que ele é todas as coisas.
       Estes paradoxos, de que Mestre Eckhart nunca se cansa, são apenas a retoma dos raciocínios clássicos: se chamamos «ser» às coisas que constituem o nosso universo, então é preciso dizer que Deus não é, mas se chamamos «ser» principalmente a Deus, então são as coisas que são «um puro nada». Nós reencontramos portanto simplesmente nestes paradoxos aquilo a que os teólogos medievais chamavam a "via negativa" e a "via afirmativa" no conhecimento de Deus. Estas duas tendências ressaltam muito bem numa passagem do sermão Quasi stella matutina: «Certos mestres de espírito frustre dizem que Deus é um ser puro; ele está tão elevado acima do ser, como o mais elevado dos anjos está acima de um mosquito. Eu também falaria falsamente se dissesse que Deus é um ser, como se dissesse que o sol é pálido ou negro. Deus não é isto nem aquilo... Mas quando eu disse que Deus não era um ser, e que ele estava acima do ser, com isso eu não lhe contestei o ser, pelo contrário, eu atribui-lhe um ser mais elevado.»
       Aquele que deve ser pobre em espírito não deve saber nada, de coisa nenhuma, nem de Deus, nem da criatura, nem dele próprio. [  ]
  12. Em terceiro lugar, a pobreza mais extrema é aquela do ser humano que não tem nada. Muitos pensam que essa pobreza é a da pessoa que não possui nenhum bem material, é verdade para aquele que o faz voluntariamente, mas existe uma outra pobreza. [  ]
  13. Eckhart disse antes, assim como outros mestres, que o ser humano devia ser livre de todas as obras exteriores e interiores, afim de deixar a Deus um lugar onde ele possa agir. Ele fala hoje de forma diferente: a pobreza em espírito, é que o ser humano seja de tal forma liberto de Deus, e de todas as suas obras, que Deus, quando ele quer operar dentro da alma, seja ele próprio o local onde ele pode operar. «Aqui, nesta pobreza, o ser humano reencontra o ser eterno que ele foi, que ele é agora, e que ele permanecerá para sempre.»
       Podemos também nos perguntar se não devemos ler estas últimas linhas na perspectiva da união mística. [  ]
  14. Na última parte do sermão, Eckhart regressa àquilo que nos disse previamente sobre a existência eterna do ser humano, retomando por vezes as mesmas expressões, ou empregando outras quer mais explicitas, quer mais paradoxais ainda. Elas culminam na afirmação completamente extraordinária: «Eu peço a Deus que me liberte de Deus.» Se ela é forçada, ela é no entanto cheia de sentido: para conhecer Deus na sua autenticidade, é indispensável que se desfaçam todas as representações culturais pelas quais nós acreditamos poder agarrá-lo. A originalidade de Eckhart consiste na afirmação de que eu me encontro a mim próprio apenas na condição de me libertar também de todo o rosto de Deus que tem um nome. «O meu ser essencial está acima de Deus enquanto que nós entendemos Deus como princípio das criaturas», explica Eckhart. Compreender que a destruição das representações sobre Deus, e que a recuperação do eu autêntico, são um só e mesmo movimento, é compreender este sermão de formulações ousadas, e compreender Mestre Eckhart todo inteiro, nos três últimos parágrafos do sermão que chocou tantos leitores. [  ]
  15. O «deserto», a «solidão» acima de Deus é uma causa não ativa, eficiente, mas passiva, ideal de Deus. A expressão «eu era a causa de mim próprio» é muito forte: segundo o ensinamento tradicional, apenas Deus é causa sui. Mas no meu ser incriado, anterior à distinção entre Criador e criatura, eu fico para além do Deus criador. O fundo da alma, idêntico ao fundo de Deus, é o único organismo do ser humano, de Deus, do mundo... Na obra latina, encontra-se também o ebullitio, o escoamento das criaturas a partir da sua causa, à qual se opõe o bullitio intra-divino: na origem, para além do Deus criador «nasceram também todas as coisas», quer dizer que todas as coisas «buliriam» na origem no estado de sementes. Enquanto não há mundo criado, ou ser mortal para invocar Deus, Deus não é "Deus". Deus aparece só no frente a frente com a criatura. «Que Deus seja Deus, disso eu sou uma causa» - cada uma das criaturas é uma causa. «Qualquer que seja o sendo criado, desde que qualquer coisa existe, a dualidade aparece entre Deus e essa qualquer coisa» (Reiner Schürmann). [  ]
  16. Mestre Eckhart fala de um grande mestre para quem o irromper (o regresso à Divindade) é mais nobre que a difusão (o escoamento no ser criado), mas tal é a conclusão lógica de todo o sermão: «Quando eu fluía de Deus todas as coisas disseram: Deus existe.» É a isto que a tradição neoplatónica chama a emanação, exitus. Desde que um único ser sai do fundo primitivo ou do Um, uma diferença se colocou, e então Deus é Deus, quer dizer o frente a frente de todas as coisas visíveis. Mas esta emanação «não me pode fazer feliz». Com efeito, ela é o princípio da dispersão. Pela emanação «eu reconheço-me criatura». O regresso, o reditus, pelo contrário, regressa da dispersão. É um momento de concentração. Esse regresso leva em direção ao Um sem nome, para além do Deus criador: «no irromper... eu estou acima de todas as criaturas, e eu não sou nem Deus nem criatura».
       Vê-se porque é que o irromper, o regresso para o fundo de Deus, que é indistintamente também o fundo da alma, é mais nobre: é o regresso à ordem depois do caos. O dom que me é feito nesse irromper, é que eu e Deus sejamos um. «Lá eu sou aquilo que eu era, e lá eu não aumento nem diminuo, porque lá eu sou uma causa imutável que move todas as coisas. Aqui, Deus não encontra lugar no ser humano, porque por esta pobreza o ser humano adquire aquilo que ele foi eternamente, e aquilo que ele permanecerá para sempre. Aqui, Deus é um com o espírito, e é a suprema pobreza que se possa encontrar.» [  ]
  17. No entanto, Mestre Eckhart quis tranquilizar os seus auditores concluindo assim os seus desenvolvimentos audaciosos: «Não é necessário saber isto.» [  ]
  18. Esta tradução foi realizada a partir da tradução francesa de Jeanne Ancelet-Hustache, «Maitre Eckhart - Sermons 31-59 - Tome II», Éditions du Seuil, Paris, 1978, p. 138-149.
    Outra tradução deste sermão pode ser encontrada em «Mestre Eckhart - Tratados e Sermões» traduzido do original alemão por Jorge Telles de Menezes, Paulinas Editora, Lisboa, 2009, p. 212-221. [  ]



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