Vida de Nuno Álvares Pereira - O partido da aliança portuguesa em Castela


«Dez anos depois de ter acompanhado, em 1340, D. Afonso IV à batalha do Salado, o prior D. fr. Álvaro fora para Castela, a pedido do rei D. Pedro, que era neto do português e subira ao trono em 1350. Por Castela andara como aliado e amigo de D. João Afonso, senhor de Albuquerque e Medelin, e ambos governavam o Reino. Toda a política terrível, mas forte, dos primeiros anos do reinado do filho da infanta Maria de Portugal, tragicamente finada em Évora, fora mais ou menos obra dos dois, que representavam em Castela o partido da aliança portuguesa. Quase português era, com efeito, D. João Afonso, neto de el-rei D. Dinis, por ser filho do bastardo Afonso Sanches e portanto sobrinho natural do rei Afonso IV e primo de sua filha, a rainha mãe de Castela. Ambas as famílias reinantes andavam, tão enlaçadas, e tão penetrados os interesses e as relações das famílias patrícias, que, se o sentimento senhorial do principado acentuava a separação das duas coroas, pode dizer-se que não existia, nas altas classes, a ideia definida de diferenciação nacional. Eram um mesmo povo com diversos príncipes.

Os dois próceres portugueses governavam a Castela de Pedro-o-Cru, que subira ao trono com quinze anos, contra o partido do conde de Trastâmara. A rainha viúva reconquistara o poder com a morte do marido, Afonso XI, que a deixara pela amante, Leonor de Gusmão, cujo primeiro acto, ao ver-se só, foi casar seu filho, o conde de Trastâmara, que tinha a Ordem de Santiago, com a filha do poderoso D. João Manuel. Presa, D. Leonor foi executada logo em 1351; e nas Astúrias, o filho, declarando guerra, provocou um tal ímpeto da parte do rei, que o pavor das execuções de Burgos levou o rebelde a refugiar-se em Portugal, homiziado. Depois das cortes de Valladolid, em 1352, e da expedição da Biscaia, a rainha Maria e os seus conselheiros pensaram em casar D. Pedro, negociando a aliança com a cunhada do rei de França, Branca de Bourbon. Vieram logo as vistas, em Cidade Rodrigo, de Afonso IV com sua filha e seu neto, o tratado de aliança com Portugal, e a reconciliarão imposta ao Trastâmara que, restabelecido nos seus títulos, partiu para as Astúrias, decidido todavia a desforrar-se.

Acto contínuo, o rebelde levantou-se em Gijon, a que o rei D. Pedro pôs cerco e tomou. Trastâmara submeteu-se-lhe; e o mesmo sucedeu com Maria Padilla, aia da mulher de D. João Afonso de Albuquerque, que o rei tomara por amante, de Sahagun. Entretanto, fugia sublevado para o Aragão D. Telo, outro filho de Leonor de Gusmão. Pouco a pouco se encastelavam as nuvens da tempestade em que naufragou o poder português em Castela. Nascia ao rei o primeiro filho dos amores com Maria Padilla, quando chegava de França a rainha D. Branca, escolhida pelos portugueses. Recusava-se o rei a recebê-la, enlaçado no braço da amante que os irmãos instigavam; e três meses esteve esperando, a rainha, até que afinal D. Pedro se casou um dia, para, no outro, abandonar descaroavelmente a esposa. E o Trastâmara D. Henrique e seu irmão D. Telmo, com a vingança da mãe presente, vieram a Valladolid entender-se com os Padillas. Estava tramada a conspiração, e a Castela dividida em dois bandos, um pela esposa abandonada, outro pela amante estremecida; um reunindo, aos filhos de Leonor de Gusmão, os infantes do Aragão e os Lacerdas; outro, aliando ao Albuquerque o mestre de Calatrava e os portugueses que andavam por Castela, como era o prior D. Álvaro.

Entre ambos, o rei optou pela amante em cujos braços se precipitou em Olmedo. Os Padillas, omnipotentes, reinavam. A gente do Albuquerque, perseguida, homiziava-se. O mestre de Calatrava, D. Álvaro, era assassinado à traição. Depois de arrasar Medelin, D. Pedro, desvairado, partia para Albuquerque onde D. João Afonso se encerrara e onde resistiu, obrigando o rei a retirar, porque a praça fronteiriça dependia, por vassalagem, de Portugal, apesar de estar em Castela. De Cáceres, mandou D. Pedro embaixadores ao avô para que lhe entregassem Albuquerque. Celebrava-se então em Évora (1353) o casamento da neta do rei, D. Maria filha de D. Pedro e de Constança Manoel, com o infante do Aragão, marquês de Tortoso; e às bodas assistiram a rainha Leonor do Aragão, tia do rei castelhano; sua mãe, a rainha viúva D. Maria, cuja influência acabara no ânimo do filho; e o próprio D. João Afonso de Albuquerque, exilado. Jantavam em S. Francisco, quando os enviados de Castela chegaram, reclamando D. João Afonso que fosse defender-se perante o seu rei. Ele retorquiu-lhes com um discurso, e a embaixada partiu sem nada ter conseguido.

Em Castela, entretanto (1354), os filhos de Leonor de Gusmão viam-se reduzidos à condição de instrumentos da cabala dos Padillas, e conspiravam. Avistaram-se sobre o Caia com o conde Álvaro Pires de Castro, irmão da amante do infante de Portugal, Inês de Castro, que a esta intriga deveu a morte (1355). Aos amantes ofereciam a coroa castelhana e, levantados em armas os rebeldes, agora aliados ao Albuquerque, faziam do senhorio de D. João Afonso, castelhano por estar em Castela, português pela vassalagem ao rei de Portugal, o campo neutro da rebelião. A rainha D. Maria passava a fronteira, enquanto seu filho obtinha de dois bispos que o casassem com Joana de Castro, a Formosa, declarando nula a sua aliança com a rainha Branca de Bourbon. Partindo outra vez, no próprio dia do casamento, D. Pedro soube como os conjurados se preparavam em Badajoz para entrar em Castela; mas encontrando em Castro Xeriz a Padilla, de novo se lhe prendeu nos braços, esquecendo para sempre Joana-a-Formosa.

A guerra civil estalava, entretanto, em Castela. De Cidade Rodrigo, os conjurados intimavam ao rei a união com D. Branca, agora presa em Toledo para onde tinha vindo de Arevalo. E Toledo pronunciava-se pela prisioneira, e o movimento propagava-se. Foi então que D. Pedro, sentindo o perigo, mandou envenenar o senhor de Albuquerque, antigo companheiro do prior D. Álvaro; mas não lhe valeu isso, porque teve de curvar a cabeça, e ir a Toro, pedir perdão às duas rainhas, a mãe e a tia, D. Maria e D. Leonor, colocar-se-lhes sob a dependência, jurar tudo quanto dele reclamavam: o abandono da Padilla, a volta a D. Branca.

Sucedera antes o caso do enterro trágico de D. João Afonso, que por isso ficou sendo chamado o do ataúde. Quando morrera de peçonha, que o rei lhe mandou dar pelo médico, os seus vassalos prometeram não enterrar o cadáver até que a guerra fosse acabada, conforme ele ordenara em seu testamento. E quando reuniam conselho em campanha, levantavam num estrado o ataúde, e falava pelo defunto Rui Dias Cabeza-de-Vaca, seu mordomo-mor. Em torno de eça, colgada ricamente de panos de ouro, reuniam-se os rebeldes, que eram cinco mil de cavalo e muita gente de pé. Submetido o rei em Toro e acabada a demanda, os vassalos de D. João Afonso foram enterrar-lhe o cadáver.

Mas, dentro em poucos meses o rei D. Pedro fugiu de Toro para Segóvia, ganhou a si os aragoneses, captou parte dos conjurados, chamou de novo a Padilla, e foi a Burgos, onde, reunindo cortes, deu largas à sua crueldade. De Burgos, por Toro, que não conseguiu entrar, passou a Toledo como um temporal, cevando-se em sangue, deixando por toda a parte após si um rastro de lágrimas. Tomada Toledo (1355) volta contra Toro, que por fim entra (1356). Aí acabou Martim Afonso Telo, o amante da rainha mãe, quando a levava pelo braço, saindo da cidade. Exilada em Portugal, morreu a rainha em Évora, de veneno.

Estavam esmagados os inimigos; fugitivos todos, a mãe e os irmãos. O Trastâmara escapara para França, a servir sob os Armagnacs nas guerras inglesas; sua mulher ficava presa; D. Fradique morria apunhalado (1358) em Sevilha; D. Telo emigrava para Baiona. A rainha do Aragão, primeiro presa, era logo assassinada.

Abolida a influência portuguesa em Castela, o prior D. Álvaro regressara de novo a Portugal, quando Afonso IV agonizava; mas decerto viera aqui, antes de 1357, por que foi ele quem defendeu o Porto por ocasião do levantamento do infante D. Pedro, a quem o pai mandara matar a amante Inês de Castro. O Porto estava a esse tempo aberto, com as velhas muralhas desmanteladas; mas o prior arvorou em seus muros os pendões das naus fundeadas no rio, erguendo-os em volta da cidade, e percebendo a sua hoste para a defesa desses símbolos sagrados de uma sociedade guerreira. O infante esteve durante duas semanas contra o Porto, sem o poder entrar com a gente de Portugal e Galiza que tomara a sua voz. Entretanto chegou o rei. A cidade estava salva; e daí vieram as pazes entre o pai e o filho, congraçados por intermédio do prior, que assim ganhou a amizade de el-rei D. Pedro...

A caminho de Santarém, D. Álvaro ia contando ao filho os casos posteriores à sua volta de Castela e ao falecimento de el-rei D. Afonso IV: como fora o escambo dos autores da morte de D. Inês, e a guerra do Aragão, em que Portugal entrara. As galés portuguesas do Pessanha tinham ido em 1359 bloquear o Ebro e atacar Barcelona; em 360 os irmãos de D. Fradique, assassinado em Sevilha, tinham entrado com os aragoneses em Castela; em 361, prosseguindo a guerra, partira de Portugal o mestre de Avis com seiscentas lanças; e depois houvera paz, sendo expulsos do Aragão os rebeldes D. Henrique, D. Telo e D. Sancho, com os castelhanos seus parciais. Morrera nesse ano a Padilla de morte natural, e a rainha D. Branca envenenada pelo marido. Eram reis terríveis ambos os Pedros, tanto o de Castela, como o de Portugal!

Logo em 1363, no ano seguinte à contenda de Granada e ao assassinato de Abu-Said, declarara-se a guerra entre a Navarra e a Inglaterra, que ao tempo tinha Bordéus e Baiona, contra o Aragão aliado à França, que da Provença mandara os três filhos de Leonor de Gusmão com reforços de companhias francas. Duguesclin viera com eles, trazendo a sua grande companhia, a Branca. Virando-se a Navarra para o inimigo, outra vez, em 1364, o rei de Castela entrou em guerra com o Aragão, e outra armada de galés portuguesas foi em seu auxílio. Três anos durara a luta até ao de 1366, quando Henrique de Trastâmara, aclamado rei em Burgos, entrou em Toledo, marchando sobre a Andaluzia em perseguição do rei D. Pedro, perdido. Mandou este sua filha D. Beatriz a Portugal com um grande dote para a casar com o futuro rei D. Fernando, implorando ao pai socorros, implorando-os ao granadino. Sevilha repeliu-o, e veio correndo atrás da filha, encontrá-la em Serpa. O rei de Portugal estava então em Valada; dai mandou recado a Coruche, aos fugitivos, para que não avançassem mais: nem o rei o podia receber, nem o infante queria casar com a filha. Eram assim os homens! O triste rei fugitivo foi bater às portas de Albuquerque, e não se lhe abriram; depois voltou a Portugal implorando salvo-conduto para passar à Galiza que lhe era fiel. Acompanharam-no os condes Álvaro Pires de Castro e João Afonso Telo, de Portalegre à Guarda, a Lamego e a Chaves, por onde entrou na Galiza, só com as filhas, abandonado, perdido, sem reino, sem fidalgos. Embarcando na Corunha, foi por mar a Baiona, pedir auxílio ao príncipe de Gales.

Socorrido, de regresso, passou o Ebro, descendo os Pirenéus, através da Navarra, cujo rei mais uma vez se bandeara. Encontraram-se os inimigos em Najera (1367) e D. Henrique, derrotado, teve de fugir para o Aragão, e de lá para França. Mais uma vez D. Pedro se via restaurado no poder, mais uma vez a sua sede de vingança fazia correr sangue; e agora a tantos jorros, que parecia demência, e muitos pensavam na necessidade de o tutelar. Não o esperava a prisão; esperava-o o punhal vingador do assassinato, de D. Fradique. Porque o vencido, aliciando tropas em França, voltava com Duguesclin à Espanha, que em Burgos e em Córdova, nos dois extremos a um tempo, se pronunciasse por ele (1368). Cercando Toledo, em cujo auxílio o rei D. Pedro vinha correndo de Sevilha, o irmão acode a embargar-lhe o passo em Montiel. Combatem. A matança é horrível: vinte e quatro mil cadáveres alastram o campo, sobre o qual fica vitorioso o rei Henrique II. O pobre rei D. Pedro, desbaratado, foge para Montiel, e dentro do Castelo morre às mãos de seu irmão (1369).

Tal era a verdade do mundo, e a história de perfídias, de violências, de traições e de baixesas, de luxúria adubada com sangue, que a larga experiência do prior D. fr. Ávaro narrara ao filho, no instante em que ele, com a imaginação cheia pelos sonhos de Cavalaria, ia entrar na cena em que esperava talhar para si um papel verdadeiramente heróico e santo, como o tipo criado pela fantasia do romancista. E com a firmeza dos videntes e a indiferença dos eleitos, Nuno Álvares ouvia os casos do tempo, que mais o convenciam da necessidade impreterível de travar a roda da maldade, estabelecendo o reinado da candidez e da força heróica.

E sentia em si ombros para tamanha empresa. Não tinha o agouro profetizado que nunca seria vencido?» (1)

Notas
  1. Oliveira Martins - A Vida de Nun'Álvares, 9ª ed., p. 24-29.

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